30.4.21

A Gaffe almirantada


Há que prestar a maior - a mais matulona -, das atenções ao dominador homenzarrão que se tornou um dos mais sedutores, mais atraentes e mais fascinantes homens certos no lugar certo.
O senhor Vice-almirante Gouveia e Melo é indiscutivelmente o poderoso, o sábio, o estratega, o mais inteligente e seguro ilustre medalhado que nos permite suspirar de alívio. É um bálsamo, um refrigério, um repouso e um consolo, saber que temos finalmente um cavalheiro que sabe o que significa silent service e que aplica sem apelo nem agravo a capacidade de síntese, de eficácia e eficiência militares a um mais do que provável pandemónio saído das mãos do confrangedor Francisco Ramos.

Com este imponente Vice-almirante a chefiar-nos a tasca, conseguiremos encontrar algum tempinho para faceboquianamente nos indignarmos com a - eventual, pois com certeza -, fuga de dados que espelha, envergonha, desonra, desautoriza, desacredita e transforma em criminoso o Instituto Nacional de Estatística, provocando o mais absoluto abuso de confiança em que se transformou de repente a operação Censos 2021 - dizem, rasgando as vestes. Um belíssimo drama  absolutamente previsível.
Qualquer um encontrará um tempinho disponível para registar a sua amotinação, depois de - muito obrigado -, ter fornecido as coisinhas da vida a uma empresa americana qualquer, por ordem superior. De cortar os pulsos.

A Gaffe acaba de cumprir aqui o seu momentinho amotinado e acredita que já esgotou a sua dose de revoltazinha diária, decidindo então - et pourquoi pas? - reler o sofisticadíssimo discurso de Marcelo Rebelo de Sousa a propósito da madrugada que Sophia esperava, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, e reconhecer que a anormal, a extraordinária, qualidade literária, a magnificente articulação da Ideia, a elevadíssima forma e estrutura do texto e o perfeito e superior modo de abordar a Liberdade e a Democracia, fizeram do Senhor Presidente mais um homem certo no lugar devido.

Já temos dois na terra. É bem melhor do que um a voar com os nossos dados. 

29.4.21

A Gaffe mesmerizada


A Gaffe encontrou de supetão Cristina Ferreira a raiar o extremismo histriónico e fundamentalista, enfiada numa carapaça luminosa enfolada e toda aos folhos, no centro de uma bradejaria inconcebível, ilha de fogo de artifício e de lâmpadas a piscar, no meio de uma manifestação alucinada e alucinogénia de búfalos, gnus, jacarés e crocodilos, a agadanhar e esgadanhar um achatado aspirante a melhores cantorias.

A Gaffe deprimida, angustiada e desesperançada, acreditou que já tinha visto tudo, até esbarrar com a sempre bizarra Gisela João a urrar, esbracejar, a praguejar, a vociferar e a rugir impropérios, como se não houvesse tempo e espaço para mais doses de silicone e de imbecilidades na boca, no centro de uma multidão de marionetas borrachonas e exibicionistas enfiadas em alvéolos coloridos.

Uma orgia de bramidos, gritos, uivos e ganidos, misturada com babados e folhosos trapicalhos, rendas e folharecos, lantejoulas, cristais e plásticos aos molhos, luzes e luzeiros, bobos e palhaços trapezistas e um ou dois macacos a tocar tambor.

A Gaffe quedou-se mesmerizada, a um passo da catalepsia.


Nunca esta rapariga supôs possível que uma impostura grotesca e pantafaçuda, almejasse e conseguisse ser um dejectório público e de sinal aberto.    

   

A Gaffe num pormenor


A constância de um detalhe, a permanência de um pormenor, na imagem total de uma mulher - Eventualmente não tanto na de um homem, demasiado desatento às filigranas da vida-, acabam por se tornar uma das chaves do seu charme, do seu carisma, da sua irrecorrível aquisição do lugar de memória, quer no tempo, quer no espaço.

É instintiva, é inconsciente, é maquinal, a forma como uma mulher submete o detalhe a uma servidão que lhe permite apurar a marca definitiva do seu particular feminino. Descura a minudência para a subjugar à sua normalidade. A peculiaridade não extravasa, pois que é refreada pela dimensão de quem a esquece. É fundamental que assim o seja, caso contrário o detalhe absorve o universo inteiro, adquire a imensidão do todo e apaga a mulher que racionalizou, cuidou, sobrevalorizou e se deixou enredar pela singularidade.

Raríssimos são os momentos em que Sua Majestade, a Rainha, surge sem um alfinete de peito colocado com rigor no lugar devido. Noblesse oblige, mas sem permitir jamais que o detalhe seja o soberano.

Consuelo Vanderbilt, duquesa de Marlborough, sempre refreou o rugido das suas exuberantes - e cruéis - estolas de raposa branca.

Frida Kahlo abateu a inestética de uma monocelha.

As mulheres do Douro e Minho acalcanham sozinhas o ouro perseverante das arrecadas.


Depois há outras mulheres.

As pregadeiras de Graça Freitas existem, mas não existe Graça Freitas.

28.4.21

A Gaffe do mealheiro



Monica Bellucci - Uma mulher de certa idade

A Gaffe admite que está desactualizada.

As belas notícias dos pequeninos protagonistas dos desencontros deste seu país chegam com atrasos inadmissíveis, tendo em conta que uma rapariga de boas famílias jamais espera pelo que quer que seja e, em relação a novas, notas e notícias, prefere ser o carro - o Jaguar - do que aguardar pelos andaluzes - os cavalos, que a Gaffe consegue esperar por alguns rapagões que biblicamente conheceu na Andaluzia.

Pensou esta rapariga em disfarçar a vergonha da desinformação e iliteracia e olhar em frente, óculos escuros a resguardar as lágrimas, mas depois até ela chegou o absolutamente mimoso Carlos Moedas, que de perninha traçada nas inflexões, reflexões, entoações e sotaques, se refere a uma certa idade de Monica Bellucci como entrave a qualquer atractivo que outrora a diva espargiu, e que o tempo tornou irrisório, esgotado e inibidor do desejo.

Carlos Moedas, devagarosamente, acreditantemente - como diria o seu querido Ondjaki -, declara Monica Bellucci inapta para o serviço, uma reformada do desejo, porque tem sensivelmente a mesma idade do candidato fanhoso que não hesita em protagonizar uma imbecilidade anacrónica, deixando escapar em público o que lhe se enraizou, cresceu e se esbardalhou na alma, um machismo queque, próprio de yuppies rançosos e desenxabidos que distraídos deixam escapar minúsculas idiotices, a saltitar no chão, logo ali pertinho dos sapatos de berloques.

A Gaffe considera estimulante observar a Bellucci já com uma incapacitante certa idade e de seguida imaginar Carlos Moedas sentadinho, de joelhinhos juntos e pezinhos encolhidos, a definir e esclarecer o que vem a ser a idade certa.

Seria mesmo muito excitante ver Moedas em cartaz, revelando - da mesma forma que a Bellucci -, o esplendor da sua idade e da sua gulbenkializada pila – como não diria Ondjaki.
Talvez então o rapaz percebesse que já nasceu velhinho.   
   

27.4.21

A Gaffe esquisita


A presença de rúcula numa salada, ou de pepino na mesa, causa-me profunda aversão.

Deixo de sentir o sabor de qualquer outro alimento se pressinto no palato a desagradabilíssima agrura do vegetal a assassinar a presença de outras histórias e o aroma do pepino destrói todos os tesouros gastronómicos com que me quiserem mimosear.

É evidente que é uma abominação absolutamente pessoal e intransmissível.
Há gente que morde com desmesurado prazer os dois horripilantes opressores de saladas.

Mas o maior pesadelo, quer do meu olfato, quer do meu palato, é a única erva aromática hostil ao ponto de me ter de afastar anos-luz do local onde está a ser usada.

O coentro.

O meu ódio aos coentros leva-me a não apreciar o Alentejo gastronómico, ou a desvirtuar, ou mesmo a contaminar por completo, as receitas que os elegem como personagens principais.

Asfixiam-me, tal como as pipocas. Seria assassinada facilmente, e com toda a impunidade, se me enfiassem debaixo do nariz durante um tempo considerável uns raminhos de coentros, enquanto me obrigavam a morder uma folhinha de rúcula, durante uma sessão de cinema em que o espectador do fundo estivesse a pulverizar pipocas, mantendo um pepino enfiado onde melhor cuidasse. O crime perfeito.

Odeio coentros e pepino e rúcula e depois pipocas. São pintas, folhas, ervas, bolinhas, bagos, grãos que destroem esta rapariga esperta.

Estas irrelevantes idiossincrasias acabam sempre por se esparramar - de sobrancelha erguida e maldizente -, sobre quem as possui, como tragédia de quem não sabe o que é bom. Arrasam as vidas perfeitas das saladas dos outros, assolam as rigorosas linhas com que se cosem os vegetarianos mais radicais e arruínam toda a esquadria gastronómica dos apologistas do respeitinho é muito bonito aplicado às receitas ancestrais.

No entanto, são apenas umas gotas a mais na nossa perfeição.

Não é de todo necessário lançar fogo a Roma com tão pouca palha. Basta que a velha capital seja submetida ao nosso paladar, ou que os romanos acendam fogareiros longe do templo. Não temos que nos subjugar à receitinha, é sempre a fórmula que se adapta a nós, assim que o desejarmos.

A receita que se dane.

26.4.21

A Gaffe naufragada


O único momento em que uma rapariga de excelentíssimas famílias deseja sofrer o destino do Titanic é quando embate com um iceberg que escalda, tendo a certeza que vai depois poder usufruir de toda a equipa de socorro, logo ali de bote.  

25.4.21

A Gaffe de vez em quando

Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha.

23.4.21

A Gaffe nas manhãs farruscas


- Não vá lá para fora, menina, que o tempo está farrusco. Frisa-lhe o cabelo todo. Então se for, leve a mantinha pelas costas que a manhã está friota.

Assusta-me perguntar se a mulher de conselhos acolchoados é realmente a primeira sobrinha da minha Jacinta perdida, ou apenas uma fagulha que a minha boa amiga deixou para que as noites de lareiras frias tenham pirilampos.
Anafada e pequena, com quase sessenta anos, de andar pesado, bamboleante, ancas roliças e mamas opulentas, a Josefa detém uma agilidade soberba, encoberta pelos aventais largos e jardinados. É a herdeira soberana da minha guardiã desaparecida. Tem de cuidar de mim, segundo diz compenetrada, e refazer o jardim de ervas aromáticas. Eis as duas últimas e titânicas missões da sua vida.

- Onde já se viu o manjericão à sombra?!

Plantou sálvia, orégãos, tomilho, tomilho-limão, cebolinho, alecrim rasteiro, cidreira, caril, hortelã, hortelã-pimenta, hortelã-mourisca, rosmaninho e tantas outras que lhes perco os nomes. A que prefiro é o incenso, de folhas verdes pálidas com rebordos pérola que exala um estrondoso aroma a procissão.

- Algumas vão secar, menina. Guardamos em frasquinhos para depois. As outras são tempero fresco.
Vou fazer-lhe logo à noite uma infusão de erva-cidreira que a vai ajudar a descansar. Vou fazê-la como aprendi era cachopa. Vai ver como é diferente.

Como é diferente o amor em Portugal.

O jardim de ervas aromáticas cresce perto das sardinheiras espanholas, mudas de cheiros, e vai invadindo o espaço solar onde a gata se alonga e ronrona numa maquiavelice que desafia a bonomia da dona que vê espalmado o seu cuidar.

- Como se chama a gata?
- Gata. Chama-se Gata.

A Gata de silêncios mansos alisa a pata com a língua serrilhada e arranha e arrasta o aroma das ervas no oscilar da cauda lenta e no recolher das garras.

- Em breve o sol descobre.

Em breve, Josefa, o sol descobre. Por enquanto todas as manhãs são as luas no miar da gata.

22.4.21

A Gaffe de Pedro, o Cru



Uma das obras de eleição – talvez a Obra – do meu avô ficou imensamente anotada, comentada e povoada de arabescos que sempre foram a sua elegantíssima caligrafia. O livro foi preservado e protegido como obra-prima da memória.
Abri-o ontem. Respeitosamente. Assustadoramente. Reli-o ontem.

Tragédia mui sentida e elegante de Dona Inês de Castro

A Castro. A aristotélica obra-prima de António Ferreira, com rastos de Séneca e mesmo de Petrarca.

Lugar de dolorosos dilemas que acabam por branquear a figura de Inês, mas que magistralmente dão primazia ao dilacerado Afonso IV que finda por desabar à vontade altruísta e nobre dos algozes - porque o bem-comum, Senhor, tem, mais larguezas com que justifica obras duvidosas -, e que mesmo nauseado pelo relativismo ético e pelas falácias dos Conselheiros, vai ser obrigado a arcar com a responsabilidade de um acto que para sempre o marcará como cínico e calculista.

A visão cósmica do poder benéfico do Amor, que, no equilíbrio renascentista, se confronta com a visão contrária, a das suas malignidades.

A arquitectura fenomenal da tragédia que tem apenas igual na profunda densidade poética da obra. É uma Arte Poética da tragédia.

As esbatidas anotações do meu avô aludem - entre tanto a decifrar! -, a Eurípedes, a Ésquilo e ao extraordinário Coro trágico, às Geórgicas de Virgílio, a Camões e a Petrarca, e é percorrendo os labirintos desta densa e poderosa caligrafia que me encontro nula e nua perante o desmedido saber do meu avô e, assustada, tento preludiar o caminho iniciático da Verdade.

Entretanto, Já morreu Dona Inês, matou-a o Amor.

21.4.21

A Gaffe e a gata


A gata gorda e parda, almofadada e velha, cruzou a pedra da lareira da cozinha, saltou para a cornija e recolhendo a cauda farfalhuda, sentou-se, desvenerando o calor que a lambia, semicerrou os olhos a olhar para mim e permitiu que a dona lhe sorrisse e acomodasse uma carícia na seda da manhosice do corpo.
Veio com a senhora recente nestas lides, as duas poderosas, gordas, pardas e almofadadas, e depressa dominou os espaços quentes das pedras e soalhos aquecidos pelas brasas das lareiras ou do sol. Adormece longamente, alongada de tédio.
É quase terna. Como se a mansidão atapetasse os corredores do tempo e a brandura com que ondula se tornasse corpo decifrável. As manhãs em que ela trepa ao cume do calor, tornam-se palpáveis. Como se o silêncio das garras fosse mais pesado, ou como se o som da minha vida estendesse mantas de veludo nas suas patas.
Tem fama de ladra. Consta que renitente. Pendura-se no atarefamento da cozinha e desvia os fundos do jantar.
Aqui, abandonou o crime, converteu-se. Já não rapina, redimiu-se a ré. Descansa em paz segura o peixe do jantar e desassossegasse a dona com a redenção.

- Estará doente, a pobre?

Mas não está. Lambuza-se com a dormência do sossego e com a desapoquentação da santidade.
Ninguém entende, a não ser eu que resto.
A minha Casa, desde os confins do tempo, vai gerando por instinto bruto ou urdidura de almas, as mais ilegíveis conivências, os mais impenetráveis vínculos entre os seres. Tornamo-nos as pedras que a ergueram. Maiores, melhores
Entranha-se lealdade, uma inabalável fidelidade em nós, que torna inútil a consciência da pertença, pois que somos simbióticos, planos no olhar que vê o mundo e que difere do olhar do estranho que é reconhecido como dispensável, tido quase como ataque à cidadela em que por instinto nos vamos tornando.
Esta singularidade mantém os esteios do passado. Segura a Casa que se vai tornando um corpo, acto comum que só se entende a si, mas que se ergue em luminosa certeza da sua permanência no futuro.
A gata gorda e parda que pertence à mulher almofada percebeu antes da dona que é agora pertença destes muros. Não rouba, já que tudo é ela.

As gatas, só as gatas e as ruivas, sabem disto. O resto é o piar do mulherio e o respigar dos ratos.

20.4.21

A Gaffe negacionista

Robin Isely

- (…) e para além disso, é uma vacina que nos altera o DNA.

- No seu caso, aproveitava a oportunidade.
Mana

19.4.21

A Gaffe lenta e fria



O amanhecer no Douro é sempre lento e frio. Um ar áspero, pedregoso e azulado, que rasteja e trepa às árvores, alterando as copas, substituindo-as. As horas do cedo das manhãs do Douro são as que sussurram a lentidão dos bichos tenros. Estão possuídas pelos lutos que nunca se devem erguer de repente, com estertores dolorosos e inúteis como trapos desfeitos pelo uso.

São as minhas manhãs de pacatos lutos. Manhãs vagarosas, azuladas, que rastejam como bichos ternos, tenros, e se aninham nas copas das árvores e no meu vestido. São manhãs que pisam a humidade, que rasam as pedras das asas do anjo do lago e rugem no dorso das carpas assustadas pelo súbito quebrar do vidro da água. São manhãs acoitadas nos linhos das almofadas que ressumbram o inevitável silêncio da saudade bordada antigamente a ponto cheio nas orlas dos meus linhos.

A sossegada solidão do meu abandono. As quietas memórias dos meus mortos. O aprendido sublimar da dolorosa ausência. A reserva das árvores que não choram e que instruídas oscilam apenas nas mãos das manhãs do azul mais triste.

As mortes, as minhas mortes, são pedaços de terra que eu amanso. Sem tremuras carpidoras, sem a inutilidade do audível arranhar das lágrimas visíveis.

As minhas mortes são a terra que eu amanso, depois de a fazer tombar nas bordaduras dos linhos onde durmo.