30.7.21

A Gaffe de polo



Apesar da tragédia dar excelentes fotografias, há protagonistas que tornam estes registos - sobretudo os involuntários, amadores ou ocasionais - em narrativas que fazem perder parte da razão os que afirmam estar implícita na foto a manipulação do autor que controla ou direcciona, mesmo que inconscientemente, a emoção, a reacção e o pensamento do espectador.

Há protagonistas de tragédias que vão - e que devem -, permanecer desconhecidos, porque ignoram a própria razão que subsiste para além da emoção que a torna visível.

29.7.21

A Gaffe altamente qualificada

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Causa-me alguma perplexidade ouvir a toda a hora lamentar o êxodo da geração mais qualificada que foi parida em Portugal.
Não porque não lamente a necessidade de emigrar dos moçoilos e das moçoilas que se esbardalham contra a completa ineficácia de quem traça directa ou indirectamente parte dos seus destinos. Incomoda-me, isso sim, o modo como se caracteriza esta geração.

A geração altamente qualificada é entrevistada a cada passo e refere do alto das suas adjectivações que não vai votar nas presidenciais porque desconhece os candidatos, que não sabe quem é Paula Rego, porque não é de cá, mora na outra margem; que estuda anatomia dez horas por dia e que não está para se incomodar com aquele que viu uma ou duas vezes na TV, e que é agora o Presidente da República, e que nos atira à cara um sonoro a gente vamos às urnas quando morremos; que diz prontus, a queima é para o desbunde;  que escreve o verbo haver sem vestígios de h, atrevendo-se a dizer quando corrigida que foi por engano ou por cansaço; que acredita que Camões é uma daquelas coisas de Pessoa e que Pessoa era um ardina que até tem uma estátua sentada; que desata a rir quando ouve referir A Montanha Mágica, por pensar que falamos da Feira Popular e que, depois de muito mais que não se diz por se ter vergonha, se despede com um fica bem desatando a cuspir promessas de banalidade nas ruas do nosso descontentamento.

É curiosa a confusão que se faz entre licenciado e qualificado. Portugal produziu nas últimas décadas um orgulhoso número de licenciados. O sistema de ensino enfiou uma quantidade avantajada de jovens em funis específicos, empurrou a carne amontoada e, conforme a cor do curso, a cor do funil, soltou um fio amorfo de engenheiros civis, engenheiros informáticos, engenheiros mecânicos, engenheiros seja do que for, enfermeiros, médicos, físicos, químicos, assistentes sociais, advogados, gestores, programadores e mais que aqui não lembra, que estudaram dez horas por dia um manual próprio ficando sem tempo para Thomas Mann. Licenciou-os, mas é discutível afirmar que os qualificou. Uma das componentes essenciais requerida por uma real qualificação é aquela que nos reporta ao entendimento global do que acontece, introduzindo nas licenciaturas uma visão humanista, uma abrangência do fenómeno vida, uma capacidade de comprometimento, de participação activa na acção de a melhorar. Infelizmente, o que permite uma, digamos para simplificar, atitude mais filosófica, ou se quisermos mais musical, perante a vida, não existe ou foi de tal modo menosprezada, tida como inútil e sem qualquer perspectiva de saída profissional, que acabou banida da área do conhecimento e do saber destes licenciados que se não passaram a ignorar por completo as chamadas Humanidades, as olham de binóculos como coisa bizarra avistada por uma curiosidade sobranceira, mas de interesse nulo ou não rentável.

Desatamos aos pinchos e aos gritos perante o sucesso internacional de um destes poucos jovens portugueses realmente qualificados - conheci um que lia Thomas Mann para tentar complementar o seu estudo na área das neurociências, outro que lia sucessivamente Crime e Castigo, porque entendia que Dostoiévski o ajudaria a compreender um paciente e ainda outro que acreditava que Bosh era um dos precursores da psicanálise e que tentava comprovar a sua tese perante a comunidade internacional de psiquiatria - e inchamos de orgulho patético e parolo, como se o triunfo de um deles fosse a coroa de louros da multidão que emigrou, como se a embaixada do país onde o jovem brilhou viesse no dia seguinte tocar-nos à campainha para nos dar os parabéns. Esquecemo-nos que ao lado de um português triunfante existe, sem notícia pomposa, dois russos, três alemães, quatro japoneses, sete polacos e dezenas e dezenas de outros portentos oriundos dos quatro cantos do mundo e que, sem eles, muito provavelmente não haveria a notícia do português na TVI.

Somos licenciados na pequenez direccionada para determinados objectivos demasiado concretos. Temos pequenos fins altamente definidos. Falta qualificarmo-nos para a interdisciplinaridade de modo a que deixemos de confundir um canudo, mesmo emigrado, com o canavial por inteiro.

É portanto aterrador quando percebemos que a próxima geração, a do turbilhão da pandemia, será a menos preparada e qualificada de sempre.  


E eis, a 23/08/2021, a argumentação do Benjami que me deixa muda e queda, arrependida pelo facto de me referir apenas à insuficiente preparação humanista daqueles que procuram deter e controlar o raciocínio matemático e científico isolando-o da face das humanidades e penalizada por me ter exaltado, sem ter recorrido ao que o Benjami me reporta, e por ter ficado perante o abandono das licenciaturas na área das Humanidades - que muitas vezes não exige, pelos seus caminhos ínvios e labirínticos, a objectividade, imprescindível da ciência.     
É importantíssimo este comentário que de certa forma - e em simultâneo - complementa, corrige e por certo contraria, o rabisco nervoso desta rapariga tonta que, apesar de tudo, continua a pensar que se o médico tiver lido Dostoiévski, será bem mais capaz de entender a natureza mais íntima do paciente, a fragilidade da sua alma perante a dor ou perante a doença, que nada têm a ver com a sua debilidade física visível e, por indução, a formular superior diagnóstico. Continuo a acreditar que se descura de forma muito perigosa esta vertente que tem raízes na Condição Humana, mas que vai passando pela margem mais distante de um mundo exclusivamente preocupado com a eficiência prática ligada ao idolatrar cego da ciência.    

Conheço infecciologistas brilhantes que não leram a Montanha Mágica. O argumento que as Humanidades e as Artes são os veículos da educação e que são portas para o mundo é uma meia-verdade. Nunca gostei deste discurso porque o argumento esvazia-se quando as Ciências e Economia são esquecidas. Também seriam mais "qualificados" se todos compreendem-se sobre imunidade inata; imunidade celular - pelo menos saber o que é e a função do anticorpo e da célula T (e digo todos).
Cálculo 1 e álgebra Linear também dão jeito já que os adolescentes coreanos e japoneses também sabem e aumenta a capacidade lógica. Para não falarmos que se todos tivessem lido referências mínimas em epidemiologia, estatística e aprenderem programação estaríamos todos bem preparados e ninguém chateava o senhor(a) do departamento de IT.
Saber realmente cozinhar é uma atividade opcional para alguns, para outros não - mas epa quem não sabe fazer um refogado é desqualificado e não partilha a mesma cama comigo

Fui excessivo a ilustrar o meu ponto. Contudo, nomear que alguém é qualificado significa apenas que conseguiu reunir as capacidades técnicas para desempenhar minimamente a profissão que aquele curso pretende responder. Sair do Le Cordon Bleu qualificado significa apenas que domina técnicas da cozinha francesa - não é Chef, não sabe outras cozinhas, não sabe administrar cozinhas; não aprende finanças, não lê nem aprende os pratos do Em Busca do Tempo Perdido. Se um "cozinheiro amador" o lesse, talvez abriria um restaurante temático só com estes pratos - mas a escrita do Proust não garante sucesso ou falência imediata. Permitiria a este cozinheiro trazer parte de si = tornar o seu trabalho mais profundo para si e para quem o rodeia.

É mais equilibrado que o conhecimento de cada um de nós seja diferente; que boas soluções para um problema com o doente possam advir de ter passado mais horas no trabalho com outros doentes vs ter trocado ideias com colegas estrangeiros vs ter lido Crime e Castigo. Voltando aos infecciologistas, a criatura que conheço parece um Dr.House, pelos diagnósticos que faz mas não conhece Mann. Nem a Greta Thunberg conhece. Faz trabalho médico e humanitário e tem as experiências que quer na sua vida pessoal - que lhe dão maturidade.

A vida é finita, os canônes de qualquer coisa não são deuses e há circunstâncias que nos trazem grandes mundos que não se exploram em tão pouco tempo


28.7.21

A Gaffe e o "Manguito d'Oiro"


A Gaffe não sabe se o gesto maroto que consiste em erguer o dedo médio de um punho fechado, se chama manguito, ou se tal denominação se restringe apenas ao icónico gesto do Zé Povinho de Bordalo Pinheiro.

Seja como for, e levante-se quem se levantar, a Gaffe decidiu que manguito é suficiente para se referir a um dos sinais mais divertidos e ecuménicos da história.

Debruçando-se, embora não literalmente, sobre o manguito, numa brevíssima apreciação com travos residuais de sociologia tresloucada, a Gaffe conclui que o gesto é considerado pelos rapagões mais expeditos uma arma arrasadora capaz de provocar danos no interior da alma do adversário, posto que exteriormente, no físico - ginasticado ou não -, não deixa qualquer rasto, a não ser que se crave num olho, seja ele qual for.


O manguito, sobretudo o masculino, é inúmeras vezes usado como ponto final das discussões que decidiram arrasar os nervos aos intervenientes, ou substituindo o derrame de vernáculos e castiços impropérios verbais, dignificando-se desta forma a cansativa e limitada treta uma imagem vale mais que mil palavras – pois que um gesto também -, ou ainda para mimosamente responder a pedidos de imbecis que sabemos crápulas - os pedidos e os donos.

É evidente que o sexo feminino não usa o manguito com a frequência desejada, necessária e devida, mas quando o faz é, na maioria das vezes, de modo muitíssimo mais criativo e absolutamente mais deleitado, bem-humorado e definitivo. Quando uma menina o usa, não existe contraditório. É altamente previsível que haja uma hemorragia e morte fulminante naqueles que se atrevem a arrastar a razão do gesto.

Um manguito é a luz vermelha de um semáforo psicopata, mas continua a ser um dos gestos que, quando bem utilizado, mais divertem a Gaffe, rapariga absolutamente tonta, desregrada e muito pouco civilizada.

Estes tempos pandémicos têm - entre tantas e variadas tontices -, servido também para conceder a torto e a direito os melhores manguitos de que há memória, aconselhando-se mesmo a criação de um evento que permita a entrega - mensal, pois que há matéria que tal justifique -, do Manguito de Oiro.


Procurando ser comedida e nunca demasiado extensa, seria maravilhoso galardoar com este troféu, por exemplo, a DGS e Graça Freitas; as medidas restritivas cantaroladas por Marianinha Vieira da Silva – ah, ah, ah, vem cantar à roda vem cantar sozinha. Eu cantar não sei, mas hei-de aprender, peço ajuda ao Tonho para o bem fazer. -; a fadiga da justiçazinha do cá se fazem e lá se pagam as cauções, mais os seus dois bizarros juízes e mais do que muitos juízos; a velhice adoentada e genial de Salgado na Sardenha; a marquise, a bondade e o altruísmo de Cristiano Ronaldo; o jornalismo português embaciado, toldado e quebrado aos gritos por José Rodrigues dos Santos; a banda e a malta de comentadores e de comentários que substituíram os ideólogos as ideologias ou mesmo Cabrita, o ministro-cartoon, pese embora o próprio encarne um manguito à decência, e o Goucha.

A Gaffe, neste arraial de possíveis nomeações, sugere que se atribua a vitória à Assembleia da República em que a absoluta miséria, indigência e penúria intelectual se arrastam pomposas e soberbas neste paço que se perde a cada passo dado em falso. Salvo as duas conhecidas e extremosas execpções que se desagrupam da ameaçadora privação de inteligência que acabou por se sentar no semicírculo – pois que semi é um prefixo certo -, todo redil merece o destaque.

A Cristina Ferreira podia perfeitamente ser a anfitriã.

20.7.21

A Gaffe dos guerreiros


Há homens devastados pelo vento, pelo travo gelado das horas destemidas e pela ousadia do querer o que é sonhado, porque não vale a pena querer menos do que isso.

Trazem o sabor a sal, a marés e a maresias ou a batalhas onde as armas são apenas um bater de asas de milhafre.

São homens que nos trazem na erosão do tempo as Cantigas de Amigo, como rosas que foram decepadas para renderem os nossos corações.

Olhamos e queremos que tragam no peito as nossas cores atadas, protegidas.


19.7.21

A Gaffe num rebelo

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É pelos caminhos estreitos e pasmados como frestas que doem como cortes de papel, que eles chegam a acarretar os seus corpos de videiras. Cheiram a suor e a velho, a cestos e a pão de trigo e trazem bagos de uvas nos olhares e mostram nus outros corpos que não vejo nos corpos sujos de terra e sumo de uva. Outros corpos nus enlameados que arrancados dos braços do chão e dos vinhedos, chegam com eles de camisas rasgadas porque suam.

É da torção da terra, do retorcer da vinha, do leito que o vinho cava como o rio, que os homens que chegam das frestas pasmadas dos caminhos me estendem os acenos desses corpos sujos, coloridos pela noite dos lagares, esfarrapados como rosas lapidadas, e deixam do fundo da ternura que o meu Douro bêbado de mosto marque devagar a rota dos rebelos nos meus seios.

16.7.21

A Gaffe inquisitoral

George Frederick Watts

Por motivos vários, que não considero pertinente referir, fiz esvoaçar os olhos por um daqueles inquéritos patetas que surgem como norma nas publicações mais tontas que atiram jornalistas às feras da inteligência de algumas das vítimas.

Por entre a colecção inevitável de banalidades trabalhadas pelo humor ou desfeitas pelo tédio, encontrei uma que obriguei o rapagão a preencher. O conjunto das respostas é um pequeno zircão - estamos comedidas - no meio dos estilhaços de vidro fosco.

- Uma pessoa especial:
- A que sou, dentro dos teus olhos.
- Um objecto:
- O meu anel nos teus dedos.
- Uma ou mais marcas:
- As que deixas no meu ombro.
- Uma viagem:
- Em redor do teu corpo, com archotes.
- Um animal:
- Eu, depois de ti.
- Um livro:
- O que escrevo nos teus olhos.
- Um local especial:
- O teu silêncio.
- Um herói de infância:
- Aquele em que me torno quando tu sorris.

Em casos destes, uma rapariga esperta não hesita um segundo em passar por cor-de-rosa.


15.7.21

A Gaffe em círculos



A temperatura facilmente se aproximava dos 38º.

Empurra-nos para o interior dos muros, para o interior das sombras das árvores, dos buchos e das pedras das escadas de granito guardado do sol pelas trepadeiras. No interior protegido das sombras escapa-se à asfixiante atmosfera que faz estourar os cachos de buganvílias e levanta a poeira dos caminhos que levam à casa.

É o calor a desenhar círculos concêntricos, apertados e distintos. Claramente sentidos, evidentemente adivinhados. É o calor que nos sorve e arrasta como títeres, impotentes marionetas movidas pelos fios de fogo.

Ao fim do dia mesmo a penumbra escalda e são as salas interiores, onde a temperatura desce abruptamente, as procuradas.
Neste fechar quente e claustrofóbico, o interior da sala maior, daquela em que as janelas se abrem para Norte, é escolhido invariavelmente. É aqui que a noite é aguardada e pela noite fora nos falamos.

Estes anéis circulares que se vão estreitando, são concêntricos e se analisados sem réstia de emoção, parecem indicar a única direcção daqueles que, como agora nós, enredados neles acabam por seguir. Fatais, empurram-nos para dentro, para o mais ínfimo ponto onde se iniciam ou, nesta perspectiva, onde se acabam.

Se observar com a mais profunda atenção e afastamento a sala onde a noite se inicia com toda a gente pousada, vejo-me longe de tudo, com uma ausência completa de vontade e sem mácula ou culpa pelo facto. Afasto-me, não por impulso desgarrado, teatral, furioso e momentâneo, mas porque não sinto falta das palavras. Talvez seja feliz e como diz o outro A felicidade não saiba contar histórias, mas, no entanto, esta minha espécie de se ser feliz é como o bicho-monstro que as crianças suspeitam que existe debaixo da cama nas noites sem sono. É uma felicidade de antes de dormir. Uma estranha suspeita de que depois do beijo da mãe que nos sossega, há mais coisas que ninguém nos diz. É uma felicidade minada pelo receio de escuro. É um sentir que há alguém, central, que nos invade e nos sorve e nos deixa exaustos e escandalosamente vazios e alarves; que faz o ar que respiramos permanecer mudo, tombado a um canto, tocado pelas mãos de um rapazinho estranho, demasiado crescido para a idade, que não tem força para lhe arrancar um choro, mas que fascinado aflora a frescura imaginada das horas em silêncio; que faz o não desejar romper mais desafios, para que o tempo se transforme numa gata manhosa a dormir na sombra.

Há objectivamente neste calor um maléfico sorver da alma dos outros.

Tornamo-nos ninguém porque deparamos de forma abrupta com a poderosa e avassaladora e incongruente vontade de sentir o silêncio da água que não corre.

No cerne, no mais profundo interior dos interiores, há o primeiro círculo que absorve tudo, mesmo a seiva nos olhos da vontade dos outros. Deixamos de sentir para sentir para ele, por ele, através dele.
É isto o calor aqui no Douro.

Diriam os entendidos que é o círculo d’oiro.

E eu gosto de ferrugem.

14.7.21

A Gaffe doadora

Song-Kang


À entrada da adolescência, a minha suavíssima sobrinha cresce florindo o loiro pálido do seu coração nórdico. O silêncio com que faz dançar os dedos pelos móveis, como que a arrastando os minutos de sossego, placidez, de quase melancolia de início de Primavera, ou de tristeza dos finais das luzes diurnas, torna-a solene, talvez sozinha, talvez insulada.
Cresceu esguia, quebradiça como haste de lírio. Branca e loira, branca e fria e que saudades, Deus meu!

Em breve, muito em breve, conhecerá o chão onde tem as suas mais profundas, as suas mais ancestrais raízes.

Na Occitânia, a terra tem memória deste sangue e é nesse chão que se cresce nesta casa.

Há quase trinta anos que não sei dos meus caminhos, mas a minha viagem iniciática pela mão da minha mãe aos lugares de todas as origens, tem lugar certo, passo a passo certo, em todos os traçados que encetei.

Creio que é a hora de voltar. A hora de entregar a outra menina o frio e o calor da Abadia onde se oficia o passado e o futuro.

Suponho que apenas eu sei do lugar das orações.   

 

13.7.21

A Gaffe de Bugatti


É tocante a amabilidade dos rapagões que atravessam estas avenidas!

Mal esta rapariga se viu em apuros, com a maquinaria vulnerável aos ataques e tropeços, foi por eles - gentis e professorais -, socorrida e ensinada a consertar o que nos motores ficou cheio de vícios.

A Gaffe acatou as instruções, mergulhou nas entranhas do motor e de lá saiu a saber pescar.

Já não há anónimos legíveis!

É tão refrescante saber que o cavalheirismo começa sempre nos arranjos de um Bugatti.


A Gaffe desacelerada

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Suponho que a mais eficente forma de fazer desaparecer o importante, é incutir-lhe velocidade. Nada é mais eficaz, nos tempos que correm - e correm depressa -, do que fazer com que a aceleração com que se comunica um facto, uma verdade, ou um acontecimento, seja de tal forma alta que tudo o que deles – verdade, facto ou acontecimento -, é relevante, necessário ou principal, seja desmemoriado ou amortecido num brevíssimo instante – dos cem aos zero -, tornando o esquecimento a normalidade, a banal vivência quotidiana.

A sucessão em catarata de narrativas diversas, aliada à brutal velocidade com que a diversidade do real nos é revelada, esvazia o acontecimento de importância e encurta drasticamente o tempo de atenção que é indispensável ao mostrado. Deixamos de ter tempo para parar perante a notícia - ela própria sem tempo de vida que permita o nosso -, perante a catastrófica sucessão de minúsculas e insuficientes durações de análise.

O importante, quando acelerado, deixa de o ser. A velocidade degrada o principal. Todos os sacanas o sabem.

É nesta aceleração contínua da vida, da forma como se vive, que o tempo permite que a medida que é usada para intervalar gerações se degrade e se torne obsoleta, inútil, falseada. Uma geração é separada da seguinte não por duas ou três décadas, como habitual, mas pelos escassos anos em que a velocidade da vida foi de tal ordem que esmagou a possibilidade de assumirmos a morosidade exigida ao crescimento e mesmo ao envelhecer. Os abismos geracionais são montrengos cada vez mais densos e abrem-se com intervalos de tempo cada vez menores. 

Talvez por isso a lentidão, indolência, a demora, com que deste velho Douro avança pelas varandas dos socalcos, faça com que o compasso destas gentes permaneça importante, essencial, quase divino e com que o peso e o alento das horas seja paulatino e dê tempo ao tempo que se vive.


12.7.21

A Gaffe sem postais

David Uzochukwu

Arranca da beleza o idílico, a pele bucólica, lírica, arcadiana, que cobre a tua visão do estranho - do que fora de ti, existe em ti na distância -, enformando o talho com que olhas o que te chega das vidas de quem não sabes nada.

Retira o slogan, o lugar-comum, o cartaz emotivo e emocional, a indiferença apaixonada de quem não vive aquilo, a ordinária fantasia do postal do turista amante da paisagem e da ternura rude do lavrar das horas olhadas com olhos de floração do seu próprio sonho.

Extrai a tua visão de postal ilustrado, alvacenta de mentir, viscosa e pegadiça, da paisagem que pensas que sentes ver e das gentes que erguem a outra que mascaras.

Corrompe as palavras adocicadas com que descreves o ancestral habitat dos pobres, da terra e do seu cheiro molhado, da infância dos penedos, dos risos dos pássaros, dos rios que correm na tua aldeia, as dulcificadas palavras da condescendência e das distâncias etnográficas com que vestes a intrínseca brutalidade do que olhas, não vendo.

O que te restará então será apenas um lancinante pedaço de Dor que nem sequer é tua.

O que te restará será a tua ignorância colorida a bicar o teu ingresso na inútil memória do inventado. 


9.7.21

A Gaffe da Marianinha

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Mariana Vieira da Silva é um doce credível, fofinho e muitíssimo simpático que os meninos espertos ofereceram ao povo para ser triturado, dada a inexistência de Graça Freitas e ao súbito apagão de Marta Temido e do seu respeitoso secretário de estado.

A menina, talvez por ter iniciado a sua carreira política ainda de cueiros académicos, consegue ser muito assertiva, convincente, moderada e bastante segura, mesmo quando é obrigada a esbardalhar-se perante a turba transmitindo-lhe a norma que obriga os donos dos restaurantes a enfiar zaragatoas nas narinas dos clientes aos fins-de-semana - suponho que também aos feriados e dias santos -, sem qualquer competência clínica, sem qualquer formação específica, sem se saber o que fazer perante um caso positivo de CoviD-19, sem nenhuma credencial emitida oficialmente que os habilite a testar os senhores e as senhoras que depois serão provavelmente servidos por estes improvisados vigilantes de saúde pública que minutos antes lhes escarafuncharam as fossas nasais sem sequer saber se foram infectados durante o lavrar das narinas do alheio. Nos dias úteis tal façanha é dispensada, pois que o vírus trabalha no estrangeiro.

Por sua vez, a obrigatória apresentação de um auto-teste para conseguir tocar num menu é a admissão e a banalização do acto de violação de dados pessoais, fornecendo informação clínica a estranhos que não são profissionais de saúde.

É mais que certo que estes rabiscos são um chorrilho de tolices, mas quem se importa, pois que se parecem com as do governamental desgoverno pandémico?! 

A Gaffe não quer de todo continuar a esbarrar com a total e absoluta falta de suporte constitucional,  de senso e de tino que torna as desordenadas, tontas, dispersas, incoerentes e contraditórias medidas de contenção ao alastrar do vírus, um desfile de carnaval imbecil com samba desnudo e a pingar de frio e de idiotice.   

A Gaffe prefere que digam simplesmente que se formos por percalço ao Burger King, devemos usar protecção adicional.


7.7.21

A Gaffe sem porta-moedas

 

Monica Bellucci and Deva Cassel - Vogue Italy July

A Gaffe não esconde o seu deslumbramento pela quase desumana beleza de Monica Bellucci e não hesita em incluí-la no ínfimo grupo dos animais mais sumptuosos do planeta.

A fotografia -  Affaire de famille - da capa da Vogue italiana, 2021, da autoria de Vicent Cassel, ex-companheiro da actriz e papá da criança, coloca a diva ao lado da filha, Deva Cassel, divulgando desta forma a ainda adolescente herdeira da formosura estrondosa de Bellucci que se coloca em lugar secundário perante a escolha de Dior, Dolce & Gabanna ou Harper's Bazaar.

É curioso perceber que, provavelmente consequência do amadurecimento da actriz, a Bellucci arrebata o cenário, magnetiza a fotografia, e a assume a inconsciente dignidade da fenomenal beleza que atravessa o tempo. Não amotina, amortece ou desarma a poderosa formosura da filha, mas usa-a para vincar, gravar e fixar, a sua própria.

Monica Bellucci é inexplicável. Quase inaceitavelmente bela.

É mais do que provável que Bellucci não tenha posado para a Vogue para provar ao fofíssimo Carlos Moedas, que a considerou fora de prazo e longe do desejo masculino, que ainda faz pendant com uma adolescente. Nada seria tão banal.

A Gaffe, pelo contrário, não se importa nada de entregar a Carlos Moedas a prova da inutilidade da preconceituosa e encanecida opinião que o ocupa e a possibilidade confrangedora de se comparar com Nicolas Lefèbvre, o actual companheiro da luxuosa diva:

A Gaffe fica tão feliz com esse pequeno prazer!  


A Gaffe premonitória

 

Henry Beard and illustrated by John E. Barrett.jpg

Há já dois anos bem contados que esta rapariga esperta tem por certo o que escreveu ao agora anunciado presidente da comissão de honra de Susana Garcia, encorpada personalidade candidata à Câmara de Amadora só porque para Amadora bacalhau basta - dir-nos-á Manuel Silvano.  

A Gaffe relaciona esta mimosa e gratificante alusão ao fiel amigo com o passado culinário do colorido apresentador e com a justificação de Rio a este apoio.

É provável que tudo acabe em águas do trocadilho, mas a Gaffe está siderada por reconhecer que nunca esteve tão certa com há dois anos quando rabiscou um amoroso bilhetinho ao Manel Luís que agora se recupera.*

A Gaffe sente-se uma velha sábia e experiente, capaz de ler as cartas e prever futuros, a uns passos curtos da fogueira.

Imagem, cuja semelhança com a realidade é absurda!John E. Barrett


G. Haderer

* Meu queridíssimo Goucha,

Antes de tudo quero desculpar-me por não retirar os óculos escuros enquanto a si me dirijo. Acredite que me sinto mais resguardada, não deixando nunca de perder a oportunidade de exibir o meu lado mais sombrio que contrabalança - sem ofuscar -, a sua esfuziante alegria. Uno este conforto à possibilidade de passar incógnita, irreconhecível, no seu programa matinal.

Escrevo para lhe expor a minha perplexidade, a minha curiosidade e o meu espanto. O menino surpreende. Não me refiro, é evidente, aos seus peculiares outfits, mas às manobras que executa para não se perceber o desespero que parece ter assolado a sua tilintante presença televisiva.

Como é lógico, lembrei-o numa entrevista sóbria que deu, de fato azul escuro, camisa de um alvura imaculada e gravata regimental, a uma senhora que me pareceu transtornada pela escolha – creio que Judite de Sousa. O menino primou pela verborreia e pelo desfilar impecável de todos os lugares-comuns que se possam enojar. Era o sambódromo da banalidade politicamente lavada e interminavelmente limpinha. Confesso que fiquei até ao fim à espera de ver surgir a pomba luminosa que aparentava habitar-lhe o coração. Foi uma desilusão ter vislumbrado apenas uma auréola pindérica colada à sua cabeça com saliva. Não convém, portanto, indicar o politicamente correcto como responsável pelo ruído que amanheceu consigo na TV e que posteriormente atingiu as redes sociais - mais uma vez de pavio curtíssimo.      

Admito que me irritou um bocadinho. Gosto mais do seu registo desafiador, irreverente e ousado e do seu histrionismo capaz de o levar a qualquer lado sem o menor escrúpulo e sem uma pontinha de ética para o apimentar, pese embora cubra estas misérias com um mal engendrado respeito pelo outro, acompanhado sempre por um lamento pio e solidário, uma revolta contra a injustiça e essas coisas todas boas e bonitas que tão bem sabe mimar. Suponho que estas características não lhe são impostas pelo dono de qualquer rubrica. O menino quer, o menino manda. Se o menino bate o pé, o menino tem.  

Repare, meu caro, que o considero um dos mais talentosos entertainers da televisão portuguesa o que é - mesmo que digam que cada estação tem o clima que merece e que cada público tem o que deseja -, façanha digna de registo e acredite que não sou uma velhinha entrevada e enfiada num lar apodrecido à espera de ouvir e ver relatos ilustrados e comentados de assassínios enquanto come a carcaça com manteiga e tenta esgotar a reforma nas chamadas de valor acrescentado que o menino não se cansa de sugerir. Sou uma petiza de boas famílias com um pecúlio razoável e, como tal, não quero deixar de o felicitar pela maravilhosa entrevista que fez a Mário Machado e pela sondagem da sua lavra que questiona se os seus leitores sentem a falta de Salazar - eu sinto. Há uns anos proibiram a colher de pau e o salazar corre perigo de extinção. A cozinha portuguesa fica cada vez mais depauperada. Estou consigo à volta dos tachos. Eu, e a Maria Vieira no facebook.

No entanto, meu caro Goucha, senti que o menino não se informou como deve ser acerca do moçoilo que tinha na frente. Mário Machado não é um rapazinho que fez apenas, há uns tempos, umas declarações polémicas. O menino teve um anjo protector por perto - provavelmente o mesmo que abençoa Teresa Guilherme -, logo ali em cima dos berloques da gravata. Foi um milagre não ter ocorrido um acidente e ter ficado com uma matraca ensanguentada enfiada no seu casamento.

Também não sou -  tal como diz que não é -, apologista do silenciar de vozes que arrastam perigos incontroláveis, eivados de populismo e de outros malefícios - que com certeza reconhece, porque provavelmente sofreu alguns durante a vida. Também não considerei bonito terem retirado o convite a Marine Le Pen para ser oradora naquela festa de finalistas de startups, mas convenhamos, meu caro Goucha, Marine Le Pen, apesar de tudo - e que se saiba -, não roubou, não tentou coagir ninguém, ameaçando gente - nem mesmo uma Procuradora da República! -, não detém armas ilegais, não provocou danos físicos a quem quer que seja, e sobretudo não esteve presa por se ter provado o seu envolvimento num assassinato. É só uma cabra de extrema-direita que pode balir livremente de forma a que se possa facilmente desmontar a bezoa.

Meu caro, não é de bom augúrio tentar lavar à força de lixívia o que deve permanecer porco e visível.

Marine Le Pen e o seu entrevistado - pese embora a afinidade e a proximidade -, são produtos para esgotos um bocadinho diferentes e temos de reconhecer que, nem o menino, nem a pobre Maria, aguentam as descargas de qualquer um destes intestinos sem um esbracejar patético, um nervozinho miúdo e pouquíssimo mais, ou mesmo nada.  

Caríssimo Goucha, retiro os óculos escuros finalmente. Serviram também para evitar o brilho das labaredas da fogueira que, mesmo ao longe, o pode queimar se continua a segurar um fósforo.   

Agora vá, meu caro. Tente controlar as audiências com outros meios, pois que se faz tarde e vai começar o programa gémeo do seu na estação rival.

Beijo.


6.7.21

A Gaffe retorna à base


É altamente improvável que um sapo traga um príncipe dentro, mas pelo menos não permite que uma rapariga esperta seja obrigada a beijar o bobo da corte. 

2.7.21

A Gaffe entre moradias

F. Vicente


É estranho ficar perante a nossa própria surpresa quando nos sentimos imprevisivelmente incomodados com a brutalidade, a boçalidade e a capacidade de se mergulhar na mais desgraçada das imbecilidades, contidas num comentário anónimo que cobiça ser ofensivo.

A atitude evidente será a de o soterrar, de o proscrever sem lhe tocar, de o aniquilar sem sequer rasar a primeira sílaba da primeira palavra.

Esta repugnante forma de alguém se revelar demente, de alguém acusar uma psicopatia contaminada por Tourette com pingentes de uma crescida e entranhada coprolalia, não é barrada na plataforma Blogger, a não ser quando se impede uma interacção ligeiramente mais alargada, restringindo drasticamente o círculo minúsculo de opiniões autorizadas.

A minha mais que evidente ausência destas lides é consequência da recusa que foi crescendo em ter de tocar no link que abre a cloaca mais abjecta que nos é dado imaginar, para a destruir em seguida.

Para surpresa minha, os comentários por assinar que tinha de desarmar depois de necessariamente os abrir, incomodavam-me, envergonhavam-me e faziam com que me sentisse a necessitar de um banho colossal que durasse horas a fio. Chegava a ficar arrepiada com a dimensão do meu asco.

A plataforma Sapo impede o anonimato, se assim o desejarmos. Os insultos, quando existem são obrigados a reter uma assinatura e conduzem-nos aos burgessos que os pariram. Uma enorme vantagem.

Tenho três opções desenhadas no monitor destas palavras. Saltito com significativo temor e náusea e longos intervalos por entre os campos destes rabiscos, retorno à casa que me protege dos bandidos e vou tentando que os pulinhos sejam mais frequentes, ou deixo de saltar.

Sou, neste momento, toda eu uma indecisão ruiva.

Pelo sim, pelo não, vou levar as malas.


1.7.21

A Gaffe e os "Lolitas"


Eu sei, meus muito jovens queridos, que vos é penoso parecer que o intelecto vos ocupa parte substancial do dia e que é muito mais risonho fazer passar uma imagem contagiante, boémia e trauliteira de festejos no Bairro Alto.

O instinto e selecção natural, tão badalados por Darwin, connosco são muito mais retorcidos do que aquilo que se fez acreditar. Não procuramos necessariamente o parceiro mais musculado, aquele que traz apenso a garantia genética do sucesso e do saudável, com esperma capaz de produzir rebentos seguros e fortalecidos e de nos fazer acreditar que teremos carne de caçadas trogloditas para o resto das nossas vidas.

Já encontramos essas coisas nos laboratórios.

Uma rapariga muito, muito, muito esperta, acaba irremediavelmente por partilhar lençóis com o menos suspeito, o mais tímido, o mais inibido, o mais Ralph Lauren, o mais inteligente e o mais vintage que encontrar, desde que não faça lembrar, nem à sombra de uma esquina, Stephen Hawking - que Deus a perdoe.