18.11.22

A Gaffe sem luar

Para a minha Amiga


A minha pequena menina tem dois tesouros.

O primeiro é uma caixa bonita de botas de montar, forrada e encadernada pelas mãos do bisavô, com papel colorido, onde guarda todas as histórias que lhe contava e desenhava, ao cair da noite e ao levantar do sono, o querido senhor que lhe oferecera a preciosidade.

A Caixa dos bonecos.

O outro tesouro é Ludovica, a cadela Teckel, esperta e fanfarrona, que evita conflitos dois centímetros mais altos do que ela - o que significa fugir a ladrar à esmagadora maioria dos problemas que surgem. As duas, cadela e menina, são cúmplices há muito e a Ludovica não escapa, de olhos pesados de preguiça e orelhas tombadas pelo tédio, aos longos debates sobre a vida toda, em que a sua pequena amiga é moderadoa e principal vedeta.

No início das noites cansadas demais, havia jogo pela certa.

Uma das propostas a que assisti era simplicíssima. Pintar em papel perdido pequenos segredos.

- Hoje, minha menina, vais desenhar a pessoa que sentes que mais te protege e guarda. Uma fada ou um anjo, por exemplo. Para eu guardar também na minha Caixa de Bonecos.

E o meu avó esperou esgotado pelo dia, ver o dia inteiro salvo no papel riscado.

A menina, de responsável lápis, traça concentrada quem mais a protege:

Ludovica!

Vi o senhor inclinar-se, preocupado. Vi-o levantar de olhos inquietos.

a bisneta diz-lhe então porquê:

- Porque quando nos vemos muito aflitas, a Ludovica corre mais do que eu para te ir chamar.

O meu avó guardou até ao fim este tesouro na carteira.

Ludovica Riba d’Ave Vilarinho e S. Romão - Lua para os amigos - é uma Teckel de muito boas famílias que nos suporta com sobranceria, caninamente apaixonada pelo dono que persegue de forma compulsiva, de cauda em arco a abanar pausadamente.

Meiga, inteligente, fleumática, óptima caçadora e muito pouco dada a mimos, é o oposto da Bórgia, assassina nata, bipolar, maníaco-depressiva, histérica e esquizofrénica.

Lua adoeceu.

A cadelinha vinha há já algum tempo a ameaçar fragilidade. Foi-lhe diagnosticado um problema cardíaco com aguda gravidade e artroses nas minúsculas patinhas rechonchudas.

Depois de medicada, a Lua resistiu e, rapariga forte, corria pela casa atrás do dono, desenfreada e tonta, reguila e distraída, desajeitada e senhora do seu um nariz seguro e empinado.

Agora piorou.

No mapa da minha alma tenho a Lua no instante do salto, de alegria disparada, de correria desatada a desfazer a relva, atrás do dono, os dois a gargalhar, os dois a explodir de espaços repletos de vento.

Os dois já cansados deitados no chão.

O que retenho desenhado é a absurda cumplicidade da cadela com um garnizé psicipata. Os dois dispostos sempre a atacar o estranho. Os dois a perseguir o Chanel da visita e já escondidos a rilhar a troça de ver por terra, tombada e amarfanhada, a pose das senhoras.O momento que guardo é o que me fala do adormecer da Lua no colo do meu irmão depois de o olhar com a mais completa entrega, a mais fenomenal das fidelidades, o mais perene Amor do Universo inteiro.

A vida distorce, altera, transforma o mapa que retenho.

Lua piorou e já não corre.
Quando o meu avô morreu, a Lua chorou um choro baixo. Um fio fino e transparente de lágrimas que durou dois dias e duas noites só findo quando a minha avó lhe entregou a manta de lã que o meu avô usava para cobrir as pernas nas tardes do jardim mais frio.

Bórgia foi arrastada para a jaula.

Não mais dormiu aos pés da cama. Deixou de entrar em casa, a não ser para farejar a cozinha à espera que alguém se comovesse com o olhar de súplica do monstro e lhe oferecesse a provar, à revelia de todos os conselhos, ordens e recomendações, um naco de carne que a Jacinta tempera com alho, vinho, cidra e ervas aromáticas.
Facilitou durante bastante tempo a entrada das visitas. Se antes se tornava um perigo tê-la solta quando na casa havia gente alheia aos seus domínios, era fácil depois fechar-lhe a porta e gradear o bicho.

Quando a Lua adoeceu, a Bórgia acordou prostrada. Chamaram-na e ela não veio.
Fomos esbaforidas e aflitas de encontro às velhas amigas.

- Deus nos valha, menina, que a cadela piorou tanto.


Bórgia.

Deixem que vos mostre a Bórgia.

A Bórgia é uma assassina nata.

Venham comigo à janela do meu quarto em casa da minha avó.

São sete da manhã e a minha prima acaba de fazer parar o carro à entrada do portão que se abrirá sem barulho, comandado por uma peça pequena com muitos botões minúsculos que não servem para nada a não ser para questionarmos a complexidade da vida e depois carregarmos num deles à toa.

Vá lá! Corram! Espreitem comigo.

A minha prima desce o vidro do carro e pesquisa o terreno. Não ouve o ladrar psicopata da cadela ensandecida e suspeita que a Bórgia ainda não foi presa.

Tem uma péssima relação com o neurótico animal. Tem o vício de a irritar, sabendo que as grades que a separam dela fazem com que a fúria aterrorizadora da cadela morda apenas o ferro. Sabendo-a presa, procura irritar a furiosa fera, chamando-lhe bébéfofinhabéu-béu e babando treta cacofónica até à exaustão e ao esgotar completo das variantes mais roucas do ladrar da assassina.

Se olharmos agora para a nossa esquerda e procurarmos entre a ramagem vemos a Bórgia à espreita, quieta e muda, posta no sossego da emboscada, com os dentes atentos ao que se vai passar, completamente SOLTA!

A rapariga abre uma frinchinha na porta, devagar. Investiga. Decide telefonar cá para dentro. São sete da manhã! Espera o quê?! A minha avó declarou há muito que nunca se incomodam as pessoas antes das 09 e depois das 20 com campainhas histéricas ou notícias de óbito.
Um pé. Um contratempo. A minha prima não usa tacões altos. Para compensar, a saia é a travada.
Vai arriscar.

Hesita.

Fecha a porta.

Volta a tentar com um tacãozinho.

Ela aí vem! A disfarçar o medo com uma saltitante corridinha.

Um míssil de fúria disparado, a Bórgia em picado voo, desenfreada corre em direcção às pernas longas e ao pânico comprido da minha prima condenada à morte.

Depois subitamente finca as patas no chão. Quieta, a rosnar de lado. Absolutamente terrível, desmesuradamente pesadelo.

A minha prima não avança. Não pode avançar. Se mover um músculo, ficará sem ele.
Bórgia vinga-se da forma mais perfeita.
A ganir, a minha prima ouve-se ao longe:

- SOCORRO!!!

Vai ter de esperar, qual estátua branca de jardim romântico, que a venham ajudar.

Entretanto, desço. Tenho tantas coisas para fazer que suspeito ocuparei toda a manhã longe do jardim e perto da mais curiosa e súbita falta de audição do resto da casa.


A assassina doida que esfacelava móveis e esfarelava as carnes dos incautos, subitamente velha agora nos meus olhos, que velha é há tanto tempo aos olhos dos que a temem, perto da Lua entristecia. Ninguém a conseguiu retirar do lado da amiga.
Trouxemos o veterinário.

- Que tossiu sangue, Senhor Doutor. Piorou tanto!

O homem entrou para observar a Lua adoecida. Saiu depois inútil, desolado. Acompanhava-o a minha avó que em silêncio ouviu o veredicto. A minha querida Jacinta atrás, a tropeçar nas pedras e a amarfanhar com as mãos o avental e a dor.

Lua treme, inquieta. Tosse e cospe sangue.
Abre cavernas na minha garganta e faz o fel golfar enchendo tudo.
Eu ali de pé, ali cravada, muda, seca, hirta, ressequida?
Abro a porta e entro e de joelhos abraço a cadelinha, a beijo a soluçar.

Bórgia a ganir muito de mansinho.  

Deixo de saber se é sangue ou se é o meu cabelo que se espalha na manta que foi do meu avô.

Lua morreu de manhãzinha.