A minha pequena menina tem dois tesouros.
O primeiro é uma caixa bonita de botas de montar, forrada e encadernada pelas mãos do bisavô, com papel colorido, onde guarda todas as histórias que lhe contava e desenhava, ao cair da noite e ao levantar do sono, o querido senhor que lhe oferecera a preciosidade.
A Caixa dos bonecos.
Ludovica Riba d’Ave Vilarinho e S. Romão - Lua para os amigos - é uma Teckel de muito boas famílias que nos suporta com sobranceria, caninamente apaixonada pelo dono que persegue de forma compulsiva, de cauda em arco a abanar pausadamente.
A Lua adoeceu.
A cadelinha vinha há já algum tempo a ameaçar fragilidade. Foi-lhe diagnosticado um problema cardíaco com aguda gravidade e artroses nas minúsculas patinhas rechonchudas.
Depois de medicada, a Lua resistiu e, rapariga
forte, corria pela casa atrás do dono, desenfreada e tonta, reguila e
distraída, desajeitada e senhora do seu um nariz seguro e empinado.
Agora piorou.
No mapa da minha alma tenho a Lua no instante do
salto, de alegria disparada, de correria desatada a desfazer a relva, atrás do
dono, os dois a gargalhar, os dois a explodir de espaços repletos de
vento.
Os dois já cansados deitados no chão.
O que retenho desenhado é a absurda cumplicidade da cadela
com um garnizé psicipata. Os dois dispostos sempre a atacar o estranho. Os dois
a perseguir o Chanel da visita e já escondidos a rilhar a troça de
ver por terra, tombada e amarfanhada, a pose das senhoras.O momento
que guardo é o que me fala do adormecer da Lua no colo do meu
irmão depois de o olhar com a mais completa entrega, a mais fenomenal das
fidelidades, o mais perene Amor do Universo inteiro.
A vida distorce, altera, transforma o mapa que retenho.
Deixem que vos mostre a Bórgia.
A Bórgia é uma assassina nata.
Venham comigo à janela do meu quarto em casa da minha avó.
São sete da manhã e a minha prima acaba de fazer parar o carro à entrada do portão que se abrirá sem barulho, comandado por uma peça pequena com muitos botões minúsculos que não servem para nada a não ser para questionarmos a complexidade da vida e depois carregarmos num deles à toa.
Vá lá! Corram! Espreitem comigo.
A minha prima desce o vidro do carro e pesquisa o terreno. Não ouve o ladrar psicopata da cadela ensandecida e suspeita que a Bórgia ainda não foi presa.
Tem uma péssima relação com o neurótico animal. Tem o vício de a irritar, sabendo que as grades que a separam dela fazem com que a fúria aterrorizadora da cadela morda apenas o ferro. Sabendo-a presa, procura irritar a furiosa fera, chamando-lhe bébé, fofinha, béu-béu e babando treta cacofónica até à exaustão e ao esgotar completo das variantes mais roucas do ladrar da assassina.
Se olharmos agora para a nossa esquerda e procurarmos entre a ramagem vemos a Bórgia à espreita, quieta e muda, posta no sossego da emboscada, com os dentes atentos ao que se vai passar, completamente SOLTA!
A rapariga abre uma frinchinha na porta, devagar. Investiga. Decide
telefonar cá para dentro. São sete da manhã! Espera o quê?! A minha avó
declarou há muito que nunca se incomodam as pessoas antes das 09 e depois das
20 com campainhas histéricas ou notícias de óbito.
Um pé. Um contratempo. A minha prima não usa tacões altos. Para compensar, a
saia é a travada.
Vai arriscar.
Hesita.
Fecha a porta.
Volta a tentar com um tacãozinho.
Ela aí vem! A disfarçar o medo com uma saltitante corridinha.
Um míssil de fúria disparado, a Bórgia em picado voo, desenfreada corre em direcção às pernas longas e ao pânico comprido da minha prima condenada à morte.
Depois subitamente finca as patas no chão. Quieta, a rosnar de lado. Absolutamente terrível, desmesuradamente pesadelo.
A minha prima não avança. Não pode avançar. Se mover um músculo,
ficará sem ele.
A Bórgia vinga-se da forma mais perfeita.
A ganir, a minha prima ouve-se ao longe:
- SOCORRO!!!
Vai ter de esperar, qual estátua branca de jardim romântico, que a venham ajudar.
Entretanto, desço. Tenho tantas coisas para fazer que suspeito ocuparei toda a manhã longe do jardim e perto da mais curiosa e súbita falta de audição do resto da casa.