12.5.20

A Gaffe perversazinha



Dizem os entendidos que o amor se vai construindo também com as incongruências individuais - com os erros que se comentem, com as idiossincrasias latentes ou declaradas, com os pequenos crimes que cada um é capaz de assumir, com as mais banais sujidades, com os mais tristes segredos e mais pequenos vícios sem tragédias -, de cada um dos amantes, que deixaram de ser vistos como elementos que condenam, revelando-se como meios de transcendente superação.

Esta colecção de pequenos pecados é vista como factor de solidificação do amor, ao lado dos unicórnios e dos arco-íris dos episódios mais felizes e dos encontros mais favoráveis e nada conflituosos. 

Amamos também quando não existe repulsa, negação, ou revolta, em relação àquilo que sempre condenamos no outro que não o nosso par amoroso. 

Gostamos até do gato que veio com ele sabendo que nos provoca alergia. Gostamos até das pantufas com ursos de peluche que chegaram com ela. Não nos corrói a paciência perceber que o comando da televisão está sempre cravado nas profundezas das almofadas do sofá. 

Dizem os entendidos. 

No entanto, as minúsculas passagens de nível, os sub-reptícios desagrados, as pequenas inconveniências, os pequenos vícios, as minúsculas asneiras que dizem ser elementos que inexplicavelmente contribuem para a coesão da fortaleza do amor, não são de todo essa argamassa. 

São a médio prazo destrutivos, arrasadores e operam tamanha erosão nas almas envolvidas que acabam, na melhor das hipóteses, por transformar em amáveis desconhecidos - ou sócios, ou condescendentes inquilinos das mesmas divisões, amigos para toda a vida -, os indivíduos que realmente se amavam.

Nada, nem nenhuma emoção benfazeja resiste a um constante embate de pequenos contrários que apenas se atraem para colidir de modo desgastante. 

Este descalabro, e consequente reconhecimento do fracasso da relação, é provocado por minudências agressivas e estreitos embates de contradições e de negações do outro e agudiza-se quando a distância - qualquer distância, física ou outra - é anulada de modo brutal e involuntário por razões externas. 

Longe da vista, pode não ser um inevitável longe do coração, mas furar os olhos do outro com a nossa constante presença que torna ostensivos os nossos mais secretos percalços, desvios e perversidadezinhas, provoca demasiadas vezes a derrocada de qualquer edifício emocional. 

Os novos heróis - os outros heróis - são agora são também aqueles que após confinamento resistem ao recomeço, reinventando mundos e resguardando espaços esconsos dentro da alma de modo a terem a hipótese de esconder do outro as suas reservas saudáveis de perversidade que permitem tocar o amor de forma transparente.