3.10.23

A Gaffe de Orwell

Tony Curanaj

A Gaffe vive num tempo em que a inteligência é silenciada para que a estupidez não se ofenda.

Voltará quando isso não a incomodar.

14.9.23

A Gaffe tapada


Estirei-me no sofá.

Absolutamente inútil, com um copo de limonada gelada na mão e uma revista atirada a um canto. O meu spleen queirosiano atingia a comédia idiota que se arrastava sem interesse na televisão muda.

Lanço breves os olhos a um artigo onde uma senhora – anafada, com certeza, baixinha, com certeza, com cimento armado na cabeleira, com certeza -, alfinetava a opinião de uma qualquer desconhecida, sem perceber que o alfinete estava a ser cravado com o seu punho fechado e que o bico voltado para cima ameaçava atingir-lhe o osso.

O calor expulso estalava a noite e a comédia marchava muda até a cena surgir deliciosa.

Um actor em excelente forma física atravessava uma sala, completamente NU!

Durante todo o trajecto – e não foi de desprezar - a pilita do senhor ficou tapada por uma data de objectos que o realizador teve a destreza de colocar estrategicamente. Uma operação que exigiu uma colecção razoável de jarras, livros, estatuetas, ramos de flores um espaldar de cadeira, uma esquina de mesa, protuberâncias de móveis e um gato repolhudo. Todos os elementos partilhavam uma característica: eram todos bastante volumosos.

Uma rapariga fica a pensar que de bom grado estilhaçaria os vidros opacos e esbardalharia as tolas bugigangas que impedem a visão de outros universos que não os que lhe provocam um tédio acalorado. No entanto, admite que às vezes é de extrema utilidade ter à mão de semear uma qualquer coisinha - uma concha, um berlinde, um fósforo, um papelito, uma florinha terna e simples - que impeça a visão de alheias e ridículas tolices confundidas com mordidas de alfinete.

A Gaffe num esquisso


 Pedi-lhe uma só vez:


- Um dia, descreves-me?

- Às vezes sento-me nas margens do rio, no lugar onde ele estreita como um pesponto de prata numa túnica verde. Sirvo-te vinho doirado. Tu és o reflexo d’oiro que morde os meus dedos.

... e depois - e ainda por cima - usa barba! ...

12.9.23

A Gaffe e o monstro


Nós, raparigas espertas, sabemos que cruzar com monumentais figuras masculinas, dignas de abrilhantar o cume do sagrado e do pagão, não é banal ou quotidiano. Habituamo-nos depressa a controlar e a dominar a frustração que é não poder saborear David Gandy todos os dias que passam.

Admitamos que a Bela, do belíssimo conto de fadas que me permite o trocadilho, tem a vantagem de estar cativa de um monstro com uma sensualidade bastante animal e um apelo erótico muito subtil.

Os homens das nossas histórias não parecem ter a força da mitologia.

Não são actualizações de Donald Draper – e quem o quer actualizado?! -, mas iniciam um processo bastante curioso nas nossas almas felinas e fazem-nos, por vezes, desejar com ardor colaborar nas dentadas. Podem não ser, não têm que ser, parte dos universos anunciados nos desfiles de futuras estações, à espera que surja no final o criador agradecendo com vénias estudadas, mas quem se importa?!

Apesar destes pormenores irritantes, são razoavelmente atractivos e sabem compor um ramalhete.

Há elementos que permanecem transversais quando se fala de beleza, de elegância e de inteligência e a sensualidade - que pode ser apanágio de qualquer colecção iluminada -, mas a ilícita volúpia que se esconde nas sombras daquilo que se torna sensual, não é passível de ser reproduzida em plástico ou reconstruída pela ideia criadora. Encontramo-la apenas, de surpresa, brutal e avassaladora, num canto qualquer das nossas vidas.

Será que se beijarmos os nossos pobres rapazes quotidianos, os transformamos em príncipes?

11.9.23

A Gaffe com uma história pequenina

Corremos à procura das nossas histórias e esperamos que a maioria nos deslumbre como brilho das estrelas. Narramos os nossos mais pequenos acontecimentos com uma grandiloquência patega e, ufanos, respiramos fundo quando conseguimos, finalmente, fazer cintilar um pedacinho arrancado à ilusão de termos um diadema de brilhos imperiais a encimar-nos.
No entanto, as nossas histórias mais perfeitas são normalmente frágeis, pequeninas, fáceis de encontrar, fáceis de contar e fáceis de esquecer.

Encontrei algures uma destas preciosidades. Não há referência ao autor. Reproduzo-a, traduzindo do inglês todas as legendas, sem qualquer interferência minha e sem macular com minha saracoteante e retorcida escrita o que é cristalino, límpido, e de uma pureza apenas visível no que há de essencial.


Numa noite de temporal a minha namorada viu o que pensávamos ser um pardal morto na nossa varanda. Mal respirava, coberto de formigas e completamente cego.

Abrigamo-lo dentro de uma caixa. Depois de passar uma noite no nosso quarto, acordou-nos com um piar agudo.Tentamos alimentá-lo, mas sem sorte. Aproximamo-lo da nossa varanda. Continuou a piar sem parar, durante três horas.

Finalmente, o pai veio ao encontro deste piar e começou a alimentar o pobrezinho. Trazia-lhe insectos e pão a cada 10-15 minutos durante todo o dia, durante duas semanas seguidas.

O pardal estava a ficar maior a cada dia, mas ainda estava cego. Chamamos um veterinário que experimentou um colírio simples. Funcionou como por encanto! O pardalito até se começou a esconder de nós atrás das flores. O pai começou então a mostrar-lhe como voar pela janela.

Um dia acabou por sair. Sabíamos que esse dia chegaria eventualmente. Ficamos realmente preocupados porque naquela mesma noite, e nos dias que se seguiram, houve tempestade. No entanto, três dias depois, o pardal voltou e adormeceu num dos nossos vasos, ao abrigo das flores.


Brilha tanto, não brilha?!


A Gaffe pistoleira

Raparigas, tenham sempre presente que há homens a quem dar uma segunda oportunidade, é o mesmo que lhes entregar uma segunda bala, porque não nos acertaram com a primeira.

7.9.23

A Gaffe retroparva

G. Haderer
Fui assistir, em NY, a um concerto ao ar livre dado por uma banda muito interessante. Uma homenagem a Tom Jobim. Esvaiu-se o nome da banda e o da vocalista. Só sei que era brasileira e que tinha uma voz muito bonita que não envergonhava o Jobim.

O que me esfacela o entendimento é a cambada de homens que serigaita sempre nestes acontecimentos. São quarentões já rançosos, alguns já entrados nos cinquenta, geralmente barrigudos com pernas fininhas, mas muito cool. Muito Willie Nelson. Muito country.

Usam pólos deformados, azuis ou pretos ou então t-shirts lisas, gastas e todas mal amanhadas; sapatos moles, com aspecto de nunca terem visto melhores dias ou sapatilhas mais que ressequidas; Jeans descaídos, sem cinto, bastante sujos e com mau aspecto e um inseparável saco de couro muito usado. Trazem o cabelo mal cortado, com umas madeixas na nuca todas oleosas ou usam um rabo-de-cavalo raquítico, embora sejam quase carecas em cima. Fumam sem parar coisas que fabricam com a perícia de um ourives, não percebendo que o que nos mata deve chegar já feito. Vão buscar as cervejas, com uma rapidez fulminante, e bebem-nas quase sempre pela garrafa ou deixam os copos vazios pousados em todo o lado. Não se sentam, mesmo havendo cadeiras à disposição por todo o lado, para se esbardalharem à nossa frente e serigaitam para trás e para diante como se tivessem grandes planos para o resto da noite. Falam alto e bom som acerca do que ouvem para mostrar que estão por dentro; criticam o tom da voz que canta, com ar muito conhecedor, e referem a data em que a canção foi escrita - fiquei a saber que há canções do Jobim com 50 anos que são ouvidas hoje como se tivessem sido escritas ontem. Nestas andanças, as irritantes criaturas não olham para ninguém. Entram e saem para trazer bejecas com os olhos de quem está a cumprir uma missão em África e desatam às gargalhadas vá lá a gente saber porquê, mesmo no meio do refrão.
Quem os acompanha são normalmente raparigas iguais. Muito modernas, com calções curtinhos e casaquinho de malha fininha, reformada e deformada, por cima da t-shirt com logos gigantes ou citações revolucionárias; cabelo desgrenhado e volumoso, espigado, e chinelos do tipo havaianas, mas decorados com umas florecas murchas, todas retro. Bebem brandy que também trazem cá para fora. Há as que empurram carrinhos com crianças dentro que, suspeito, provam as bebidas dos pais antes de sair de casa, porque estão sempre a dormir e com ranho seco no nariz.

Comecei por achar que não passavam de representantes do estereotipado intelectual de esquerda gasta, mas sou nova e não penso. Da esquerda só os que são canhotos. O resto é maneta.

Há-os por todo o lado e desfazem por completo o prazer que há em se ouvir em sossego uma canção de Jobim.

São os retroparvos.

A Gaffe do campeão


A Gaffe não gosta de poeira a voltear no espaço. Espera que tombe e assente para depois colocar os seus Jimmy Shoo no pavimento.

Há contudo futuros sedimentos que a fazem cismar e arriscar o sapato.

Observa com algum pasmo o proliferar de indignação generalizada desperta pelos feitos de um senhor de meia-idade de excitado coração.
Rubiales, provavelmente depois de fumar umas coisitas ilegais, mostrou que nada há de mais patético do que um homem maduro que, com enorme poder, quer financeiro, quer simbólico - e é provável que por causa deles -, deduz que lhe é permitido beijar e apalpar atletas à laia de felicitações, ou como quem sopra a vela.

Mimar a campeã Jennifer Hermoso com um repenicado beijo na boca durante os festejos do título mundial de futebol feminino ganho por Espanha, ou mesmo antes das sudações efusivas às campeãs do mundo, agarrar os valentes genitais que também festejavam o golo de Olga Carmona, apesar de estar a poucos metros da Rainha Letícia e da Infanta Sofia – que merecem todo o recato em relação a festividades tomatinas, e tomate por tomate agarra-se os da horta do rei -, foram actos que conseguiram quase a unanimidade em redor da indignação, quase um consenso impossível, quase uma coesão almejada, a união de forças, de um país que se sentiu revoltado, humilhado, achincalhado e desconsiderado pelo globo inteiro.

Dir-se-ia que ninguém, no passado ou no presente, cometeu equivalente afronta nem ao país dos reis católicos, nem aos planetas dos outros macacos.

Em Portugal seria caso para que um Conselho de Ministros fosse interrompido para que o governo de declarasse a sua mais profunda revolta perante o acontecido. Marcelo visitasse outra vez as trncheiras ucranianas e António Costa se mantivesse em silêncio, como parece ser o seu new black.

Foi por pouco.

O mundo soltou jiboias, jacarés, periquitos, tarântulas, demasiados camaleões e restante fauna de arcas dos noés do facebook. Todos os bicharocos passíveis de serem mantidos ad nauseam. Multiplicaram-se os artigos erguidos do chão enlameado onde Rubiales colocou os espanhóis. Sucederam-se petições e abaixo assinados ao lado de blogues surgidos com o único intuito de exigir a demissão do ofensor. Fizeram-se manifestações à porta do Parlamento mostrando Espanha ofendida e humilhada erguendo a sua voz dorida.

Entretanto, a supostamente ofendida, aconselhada pelo batalhão de assessores de imprensa e de imagem que ganha num mês o que a totalidade dos manifestantes revoltados ganha num ano, nega ao senhor de meia-idade que tem imenso campo para abraçar e apalpar jogadoras - que entretanto alegadamente se divertiram com o facto – o consentimento informado dado ao prevaricador.

Em simultâneo à continência vingativa, o espanhol beijoqueiro, contrariando à boca desarmada a opinião dos sapientes comentadores e atentos peritos, comprova que os homens que se agarram aos testículos tendem a festejar com mais entusiasmo as mulheres que se sagram campeãs seja do que for e não se demite, não se demite, não se demite, não se demite, não se demite.
Mostra-se irredutível no consentimento dado e não deixa de lembrar aos jornalistas que quem produz um campeão é como que faz um filho, fá-lo por gosto. Daí as conotações sexuais. 

Rubiales é um atraente senhor de meia-idade que se tornou patético.

E o resto torna-se impressionante quando se levantam tempestades de poeira onde se devia apenas calcar com o tacão o que Rubiales agarrou ao festejar o golo de Olga Carmona.

A Gaffe debica o episódio - incluindo os detalhes mais escabrosos -, vivido pela campeã, rapariga que devia entrar de imediato para o Guniness como protagonista dos festejos mais enviesados da história do desporto.

A Gaffe suspeita que apenas se cometeu um crime. Coisa de nada, pois que a menina levantou o seleccionador, elevou-o, ergueu-o do chão, deu-lhe colo, abraçou-o forte e feio, logo sabia para o que ia, logo PIMBA - quer se queira, quer não se queira, quer se mude ou não de intenções, ali ou acolá, onde aprouver ao macho -, e, dizem as fontes, não era a única que andava a arrastar o corpo curvilíneo - em boa forma física - pelas ruas de aflitinhos cios de treinadores e compinchas.

São tresloucadas as doidas que acusam um homem com bagatelas, incomodando a mãe do pobre – pois que afinal, enfim, valhamedeus, ninguém violou ninguém num beco escuro – diz Woody Allen com todo um ar de experiência feito.

A Gaffe lê que a campeã deve ser apenas uma oportunista, que consentiu e calou, rebentando a bola depois para recolher uns fundos.

É evidente, meus amores, que não é de somenos importância a palavra consentimento e é evidente também que o assédio sexual não é uma monstruosidade que derrama ácido apenas sobre os corpos e as mentes de incógnitas meninas. O assédio é, como a morte, irrepreensivelmente democrata e não se limita a violações mais ou menos literais, nais ou menos consentidas - tendo em conta que a prostituição é sempre uma violação consentida.

A Gaffe ouve siderada o argumento que ergue a bandeira do poder divinizado do agressor. O sou-quem-sabes-logo-posso-beijar-te-que-tu-deixas.

Um homem com um poder específico - dizem sem se aperceberem do quão redutor, ofensivo, medíocre e patético é o que dizem – é um homem capaz de seduzir quem quiser. Ruibiales – leio - arranjava melhor do que aquilo. Acontece que Rubiales até pode arranjar melhor do que aquilo, mas não pode beijar ninguém, apalpar ninguém, usando e abusando do poder simbólico e constrangedor que detém e que inconscientemente é peso opressor e dominador exercido sobre a vítima.

A Gaffe ouviu o agressor clamar inocência, ter a consciência tranquila. É, portanto, apenas bonito, famoso, talentoso, trabalhador, rico e competente, e com estas inflaccionadas características todas as acusações consubstanciam actos de desmedido bullyng. A Gaffe ouve mesmo gente - demasiadas mulheres mais uma vez -, que ilibam com uma facilidade assustadora um acto que a ser aprovado - e parece haver matéria para tal receio - é um abuso nojento de poder cometido por um homem sobre uma mulher, independentemente de qualquer campeonato.

- Ai, que lhe vão destruir a vida.

Se for o que parece, meus amores, esperemos que sim.

6.9.23

A Gaffe no rescaldo


As Jornadas Mundiais da Juventude realizadas num Agosto de Lisboa, foram de retorno curcunspeto, espiritual e pio, segundo informação que a Gaffe não se importa que não seja fidedigna, porque é cristã.
A Gaffe está radiante, embora reconheça que esta não foi a razão usada para fazer disparar o fervor nervosinho de Moedas. Apesar de ninguém como Marcelo consiguir arrancar ao abanão os braços do Papa, temos de reconhecer que Moedas é exímio  na genuflexão - que sabemos ser o horror quando mal executada.

A Gaffe adora excentricidades e o Vaticano é uma galáxia no que diz respeito a estes pequenos desvios à rotina sensaborona.

Lamenta, ontem como hoje, que o chefe de Estado amarelo e branco seja uma espécie de pároco bonacheirão, que não se cansa de dizer coisas óptimas de bondosas, muito faceboquianas e que a Gaffe diria com facilidade, desde que lhe cedessem o palácio a título vitalício, lhe entregassem uma honra qualquer vagamente renascentista e lhe chamassem Sumo - magríssimo, não aquele japonês de penteado giríssimo, que anda de fio dental todo decorado a empurrar o parceiro de modo um bocadinho teimoso e inútil -, mas admite que as extravagâncias que brotam dos mármores de Carrara - e sabe Deus mais donde - que forram as assoalhadas do Vaticano, são maravilhosas.

A Gaffe considera, por exemplo, uma ternura ser uma dúzia e meia de velhinhos a eleger outro velhinho para se alapar no trono de Pedro e usar a tiara papal que - dizem as más línguas e Francisco que a recusa -, não faz pendant com o colar e os brincos. A Gaffe julga divinal o velhinho eleito ter competência para repensar pedofilias, escrever encíclicas imensas numa língua defunta, visitar de avião os pobrezinhos, emanar coisas em latim dirigidas a milhões de súbditos que as não sabem ler e conseguir ir a casamentos vestido de branco sem afrontar a noiva e quebrar o protocolo.

A Gaffe pensa que é um mimo de chic ir de vez em quando à varanda acenar às multidões embevecidas e lamentar tristonho e muito circunspecto aquelas coisas desagradáveis que os mortais sofrem de quando em vez - a guerra na Ucrânia e o calor que faz, por exemplo.

A Gaffe acha um milagre que se reconheça que se conseguiu durante tempos infindos fazer desaparecer numa paróquia mais esconsa um companheiro de aventura cardinal que se empolgou em excesso na sacristia, catequisando, com punho hirto e duro como barra de ferro, aquelas coisas mais pequenas que não querem rezar condignamente.

A Gaffe considera obra do Espírito Santo ser-se capaz de governar um banco apenas com esmolas dos tão crentes e transformá-lo sacramente num dos mais poderosos e influentes manipuladores das finanças mundiais – com inclusão das finanças dos mafiosos, dos tios das offshores e de outras ainda mais armadas.

A Gaffe considera um must andar empoleirado numa cabine telefónica com rodas, transparente e à prova de bala, com dezenas de matulões a correr ao lado, para não deixar cair a chamada.

Seja como for, a quantidade de mocetões acalorados - mais este e aquele, o outro e toda a gente -, que estiveram juntinhos nas Jornadas Mundiais da Juventude 2023, acabou em rezas muito proveitosas, névoas de sacrifícios, despidas penitências e é mais do que provável numa ou noutra aparição em qualquer gruta mais recôndita.

Apesar de existir sempre um certo cardeal - cardinal ou não - que só se abstém quando os ventos sopram nas batinas, opas, báculos e mitras, revelando a quantidade de hóstias que foi compilando e papando nas mais escuras capelinhas, em Portugal há sol e quando há sol, há Jornadas, e se há uma Jornada em cada vida, é preciso cantá-la assim despida, pois se Deus nos deu hóstias, foi p’ra as papar, e se um dia se há-de ser pó, cinza e nada, que seja o paraíso uma noitada que se deixa perder para pecar.

Gerhard Haderer
Os aplausos unânimes ao Papa Francisco deixam a Gaffe muito intrigada, para mal dos seus pecados.

Esta rapariga esperta confessa que não hesita em trocar os seus Jimmy Choo por uns chinelinhos mais simples, substituir os brincos Cartier por uns pechisbeques chineses e abandonar os seus casaquinhos Dior passando a usar umas coisinhas mais em conta, se lhe assegurarem que a elevam ao estatuto de estrela.

A Gaffe promete que passa a fazer uma data de declarações de boas intenções - mesmo sabendo que nos cantos escuros da vida qualquer declaração é parda -, que dá beijinhos aos pobrezinhos, lava os pés uma vez por ano a três ou quatro eleitos devidamente preparados com antecedência pela sua esteticista, pedir uma série de imensas desculpas a todos os abusados nos recantos esconsos das sacristias e empurrar os matulões que lhe protegem os flancos só para poder mostrar as frentes ao populacho, se lhe garantirem a aclamação total e consumada glória.

Não garante contudo transformar-se em Santo Pároco por muito amorosa que seja esta condição.

O erudito e mal compreendido Bento XVI apoiará a sagração da Gaffe como papisa, porque após a eleição a nova papisa, que adoptará o nome de papisa Pia - soa bem esta espécie degradada de cacofonia! - Pi para os amigos, 3.14 para os seminaristas e P13 para os cépticos e para os pilotos de caças, retomará as tradições vaticanas embora com ligeiras actualizações.

Vai continuar, embora não desdenhe as propostas da Casa Chanel, a vestir Armani depois de lhe pregar dois pares de estalos por ter desenhado as batinas brancas curtas demais.
Vai permitir-se usar um colar de rubis e mandar limpar a tiara papal para usar nas férias em Castelgandolfo.
Quer passar a ostentar óculos Roberto Cavalli, gigantescos para parecer uma mosca anfetamínica, sapatos vermelhos, Prada, mas com laçarote, e declarar o estado de sítio no Vaticano de modo a não ser perturbada enquanto ensina o catecismo aos noviços que terão de ser sempre inspeccionados por si antes de receberem a paróquia.
As suas encíclicas serão em francês e muito curtas porque o papel onde as escreverá será desenhado pela Casa Dior. Serão muito informais e muito rápidas de ler - só uns bilhetitos a mandar beijocas -, porque o que interessa é ajoelhar e rezar imenso.
Excomungará os pastorinhos por terem descrito a Virgem - agora da SUA família - empoleirada numa árvore e naqueles preparos.

É que nem de tailleur!

Decretará que todos os cardeais deverão usar sinalização luminosa cravado no rabo avisando que libertam gases tóxicos e uma pochette cardinal ou um nécessaire que incluirá obviamente fixador de dentaduras.

E que ninguém se dê à maçada de lhe falar da Inquisição, das Cruzadas, dos abusos sexuais e dos outros boatos enfadonhos mais ou menos actuais, sim?

O seu primeiro acto oficial será o de excomungar o Chicão, não o imberbe, mas o seu popular e consensual antecessor, porque sempre considerou que quando toda a gente pensa o mesmo, é porque ninguém está a pensar grande coisa.

O certo é que apesar do Vaticano não ter produzido calendários que dessem oportunidade às pessoas de emoldurarem a fotografia do velhíssimo papa emérito pendurando-a depois - ainda vivo - toda dourada na parede do hall, a Gaffe recorda com saudade o impacto visual deste seu querido alemão:

Ratzinger foi um papa injustiçado. A verdade é que tinha cara de quem o merece ser, mas compensava com uma erudição principesca, uma timidez incomum e um bom gosto irrepreensível.

Quando, por muito que pareça o contrário, não tencionamos ou não podemos mexer ou fazer mexer uma palha, convém que o façamos pelo menos a perceber que a diferença entre as normas protocolares - as formalidades do nada fazer -, e um sequestro, é que apesar de tudo podemos sempre tentar negociar com os sequestradores.

As quebras de protocolo do papa Francisco são amorosas e fofinhas. Evita usa aqueles sanitários transparentes em cima do automóvel e dá beijocas aos fiéis - esbardalhando a segurança que se vê grega, mesmo sem Troika, cheias ou incêndios, para o proteger -, não usa os paramentos e os adereços usuais que tanto ajoelharam Armani e Prada e junta-se em amena cavaqueira aos jornalistas a quem se dirige como se os ditos fossem velhos amigos a jogar dominó numa mesinha dos jardins vaticanos, à sombra da passarada chefiada pelo Espírito Santo - que já foi o dono disto tudo. 

A ausência de formalidade de Francisco é uma espécie de ingenuidade que acredita que o despojamento e a familiaridade cúmplice o tornam mais próximos do cumprimento da sua missão, mas que se esquece que existem José Rodrigues dos Santos por todo o lado, cheios de vontade de transformar num romance histórico uma frase de tonta coloquialidade ou de paralisar todos os gregos, esses trafulhas e corruptos, que passam pela porta de um Ministro da Defesa, como referiu outrora o citado jornalista

Ratzinger vivia em latim, o que complicava a vida aos jornalistas que apresentavam dificuldades sérias em experienciar a sua própria gramática, mas que implicava e produzia um distanciamento reverente que é essencial a uma imagem de marca que se quer sagrada, consagrada e capaz de convencer multidões das suas potencialidades e benefícios, mesmo que não possua nenhuns.

Embora acreditemos que se a Gaffe fosse polícia dos narcóticos não deixaria de revistar os ombros do sobretudo de Ratzinger, perfurando-os com um dedo para depois esfregar nos dentes o conteúdo - a Gaffe nunca entendeu como é que esta polícia não anda toda pedrada - a simplicidade franciscana do papa actual não é de todo persuasiva. Nunca se esperou que o Vaticano desatasse a empenhar os anéis para socorrer os pobrezinhos que de gestos simbólicos enchem a despensa desde os primórdios do tempo e não é usando apenas a batina costurada pela irmã Lúcia que Sua Santidade altera vocações, sobretudo a vocação do Vaticano. A Jonet que o diga.

É sempre mais convincente fazer que se faz alguma coisa, deixando tudo como está, se estivermos bem vestidos, diria Maquiavel se tivesse conhecido a Gaffe.

A bonomia e o despojamento de pároco de aldeia do papa Francisco não é, embora pareça paradoxal, sinónimo de aproximação ao povo que pastoreia. Engana apenas os carneiros que acreditam que na pele daquela ovelha não existe qualquer lobo.


A Gaffe não considera relevante referir os provadíssimos crimes e escândalos sexuais da igreja que abalam o planeta, mas a verdade é que já são passados e pr'á frente é que é o caminho do senhor.      

Pelo menos Ratzinger usava écharpes giras.

A Gaffe escreve ao Ministro

Alunas da George Washington University, Washington, DC

Meu caríssimo João,

Devo dizer, antes de tudo, que o considero o ministro mais atraente e mais alto do governo, sobretudo quando aparece ao lado de da ministra da agricultura ou da justiça – nesta altura uma pessoa confunde já os ministérios.


Posto isto, e sabendo que uma rapariga ajuizada está sempre predisposta a não acolher com bons olhos as diabruras com que criaturas mal-intencionadas e feias costumam sujar o chão pisado por um homem sensual, prontifico-me a enfrentar por si a turba esfaimada.

Admiro a sua sensatez, fico deslumbrada com a lógica filosófica sublimada nas suas decisões e não posso deixar de prestar a minha homenagem e de lhe apresentar total solidariedade, quando o vejo martirizado perante acusações injustíssimas que lhe ferem o orgulho e minam as suas boas intenções.

Miúdos sem professores durante a totalidade dos anos lectivos, lapso imputado escandalosamente à ineficácia da equipa que lidera, são claros atrasos destes grevistas que por tradição chegam sempre quinze minutos depois do segundo toque. Toda a gente sabe desde tempos imemoriais que os alunos esperam imenso que o docente se arraste pelos corredores até chegar à sala, sempre a queixar-se que não tem tempo para dar o programa todo com turmas formadas por um número infindável de burocracias. Todas as pessoas de bem sabem que um professor é como um general. Deve saber liderar os seus soldados, incutir-lhes valores morais, cívicos e disciplinados, castigar quando prevaricam, exercitá-los até que reajam em uníssono perante a sua voz de autoridade. Se um general não admite liderar um batalhão de dois ou três pindéricos, um professor não tem o direito de choramingar quando é honrado com uma turma de trinta soldadinhos para treinar.

Depois, há o facto que tão bem sublinhou e iluminou das mulheres se terem afastado do ensino, por terem torcado esta tão prestigiada e recatada profissão por outras actividades muito menos cor-de-rosa. Sabemos há décadas - desde tempos que já lá vão e que caíram da cadeira -  que lecionar é feminino. Como lidar com esta debandada feminista?!   

Este indecoroso comportamento inclui a cegueira humanitária desta gente que é controlada por um homem de bigode estranho ou por um outro sinistro e esgazeado. Os professores parecem indiferentes aos exemplos dos refugiados que - valha-nos Deus! – são como moscas a assolar a nossa querida Europa fazendo crer que a pobre já está morta e em decomposição. Não vislumbram sequer que as distâncias que estes pobres percorrem são muito superiores àquelas que separam as suas casotas das escolas onde ficam colocados. Não sei se estes migrantes têm casa lá na terra. Penso que vivem naquelas tendas fantásticas, cobertas com tapetes maravilhosos e paisagens de nos tirar a respiração, mas não os vejo a lacrimejar por terem de caminhar alguns desertos até chegar aos seus postos de trabalho.

É compreensível a sua indignação, assim como é lógico que impeça que os nossos impostos sejam atirados aos ventos que são as Escolas Artísticas. Temos a Joana Vasconcelos, temos o José Rodrigues dos Santos, Temos o Pedro Chagas Freitas, temos o José Avillez e até temos a versatilidade do Goucha, mas onde estão os picheleiros? Os torneiros mecânicos, seja lá o que isso for? Os serralheiros? Os serventes dos trolhas e os nossos serventes?! Urge apostar nestas formações básicas e acabar com os pliés os tendus e os frappés. Se queremos ver dançar temos o NY City Ballet. É imprescindível que se trave o acesso das multidões desvairadas ao Ensino Superior e ao Ensino Artístico começando, como muito bem prevê - visionário que é -, a dirigir as crianças mais ranhosas, mais necessitadas e mais subsidiadas - uns sem-abrigo se frequentam as Universidades -, para as formações mais práticas e mais úteis, mesmo aoc pé de casa, que não vampirizam os nossos impostos e que duram dois ou três meses. O Instituto de Emprego e Formação Profissional é pioneiro e tem larga experiência nestas andanças, mas é a um Ministério esclarecido que compete dar envergadura a estas iniciativas que não descuram, de todo, a vertente cultural da aprendizagem.

O ensino do Inglês no primeiro Ciclo é disso exemplo.
Pese embora as tolices dos especialistas que afirmam que aprender a falar e a escrever a língua materna exige uma imensa actividade cerebral e que a exposição simultânea e de teor académico a outra língua interfere de modo negativo no processo de aprendizagem, o meu querido não se deixa enganar e taxa com chumbo quem não torcer o pepino inglês na 4.ª classe. É claríssimo o disparate dos que defendem que o 1.º Ciclo deve apenas ser embalado com os sons da língua inglesa que vagueiam nas cançonetas e lengalengas de Suas Majestades britânicas ou por desenhos, jogos e teatralizações que permitem apreender de forma involuntária e mesmo inconsciente as subtilezas de uma língua estranha. Não nos deixemos enganar! Pagamos os serviços e queremos resultados. Decorar verbos, construções frásicas, frases idiomáticas, vocabulário, a árvore genealógica do rei e as linhas de caminhos-de-ferro que servem o Reino Unido, produz adultos poliglotas, se na escolinha for também servido o mandarim e coisa assim. É certo que já ninguém sabe - e odeia quem o diz -, onde nasce, passa, tropeça e desagua o rio Alfusqueiro ou o rio Fasfião, mas foi uma aventura sujeita a chumbo decorar estas maravilhas portuguesas. Há que recuperar esta produtiva pedagogia, pese agora projecatada nas paredes em sensoriais experiênções de informática inteligência.

Mais lhe teria para dizer, meu querido João, mas se já ninguém atura as aulas interactivas, as provas de aferição informatizadas, as juntas médicas a avaliar cancros mentirosos e o tempo de serviço que é morto de hora em hora, para que serve uma missiva de uma pobre fã dona de um blogue?!

Após vénia mimosa, receba um beijinho da Gaffe.

5.9.23

A Gafe dos muito iguais

Há uma tribo constituída na sua maioria por rapazinhos mais ou menos empertigaitados, muito miméticos, com a capacidade de nos humilhar de fininho com espetadelas de alfinetes miudinhos quando aparecemos todas dispostas a mandar a Chanel para as urtigas.

São como sardinhas pequeninas. Não servem para conservar e são precisas muitas para acompanhar um arroz com tomates.
São rapazinhos doidos por mostrar que a cadeira onde devíamos alapar o rabinho devia chamar-se Le Corbusier e não ter o aspecto miserável das que se chamam Nunes - grande português que vive em Carrazeda de Ansiães e tem bigode farto ,- e  que foram compradas baratas na carpintaria com o mesmo nome.

Gostam de referir as viagens que fazem à Patagónia, apesar do tempo, e mostrar-nos que não dá, de todo, um bom ar esbardanhar o corpinho na areia mais próxima de casa, no pino do Verão.

Gostam de visitar museus e arranjam modo de verificar se a Mona Lisa dava com a chaise-longue que há no hall dos apartamentos pipis que arranjam com o dedo mindinho no ar.

Criticam todas as nossas expressões mais banais e acreditam que a Princesa Diana foi assassinada.

Costumam dizer-nos sem qualquer tipo de pudor que leram Shakespeare aos cinco anos, Tolstoi aos dez e com onze andavam enfronhados em Dostoiévski e, quando se referem à pintura, pasmam-nos declarando que foi aos sete aninhos que descobriram as subtilezas do expressionismo e as nuances todas curvas do barroco. Não percebem que não somos parvas e que reconhecemos que uma criança de cinco anos dedicada a Shakespeare ou à talha dourada dos séculos passados sofre de graves perturbações que num futuro por tratar a transformarão numa psicopata.

São, para espanto meu, quase todos magrinhos e na sua maioria até são girinhos - ou girinos. Usam jeans apertaditos, camisolas de malhinha com decote em V para deixar que se veja a t-shirt branca rentinha ao pescoço, uns ténis aguçados muito D&G e trazem umas pulseiras ranhosas e podres, de tecido colorido, apertadas com um nó que se tem de desfazer para dar sorte.

Raramente andam sozinhos. Arranjam sempre um compincha meio débil e com um QI vagamente numerável que lhes apara o pião e lhes vai dando razão, imitando-o, cameleonicamente, nas farpas, nas fardas e nas opiniões. Dizem umas coisinhas com ar de quem decorou os resumos dos manuais escolares e gostam imenso de arranjos florais.

São pios e vão à missa, mas nunca rezam ajoelhados para não dar azo a ditos maldosos. Não são gays, são, quando muito, gente moderna e solta, sem teias de aranha, nem vestígios de preconceito e podem, eventualmente, dar uma ou outra escapadela com o mecânico que lhes arranja o mini, mas é tudo por uma questão higiénica: já que o rapagão tem a mão na agulheta, pode muito bem desentupir-lhes os canos. Nada de misturar sexo com isto, porque com estes moços, sexo é só entre iguais. E são muito iguais estes rapazes.
Andam a passear a cauda por todo o lado e depois, como quem não quer a coisa, vão informando que são os filhos mais novos de qualquer Direcção.

Frente a um rapazinho filho mais novo de qualquer Direcção que se permite produzir o rebento descrito, logo se percebe que o rapaz tem a mãe entrevada. Há que ter o dobro da paciência e arranjar maneira de o mandar apanhar coisas - ou pilas - sem despertar muita atenção.

Já não se fazem homens como dantes! - diria a minha saudosa Jacinta olhando de soslaio os moldes das molas de rapazes mais peludos.

A Gaffe com Tolstoi


É claro que hesito.

Se pensar ligeiramente mais alto acabo por descobrir a mais evidente das verdades:
Não interessa absolutamente nada aquilo que aqui faço, especada frente ao monitor a escoar frases patetas - patéticas, também - que tropeçam e escorregam, acabando esparramadas nos meus braços.

Depois chega, no labiríntico tempo das nuvens e do vento, com a simplicidade doce do início de tudo, a natural conclusão oferecida pela tonta e inocente futilidade que saltita:

Não tenho a veleidade de acreditar que trago as chaves das catacumbas das catedrais da mente e nem sequer ouso falar das catedrais dos céus, com a certeza da existência de alguém a ouvir, babado e interessado, a alterar a vida, a repensar o ser, a duvidar do ego, a rastejar só para me ler, a piamente orar por mais uma palavra, a beber desesperado os despojos das sílabas que repenso, cruzo, entranço, misturo, embebo e torço.

Mas, como diz a Guiduxa Rebelo Pinto: Não há coincidências.

Folheio, neste instante, o labirinto da minha guerra e da minha paz e na vida de Nada que é a minha, recomeço a ouvir o velho russo:

Narra a tua aldeia e narrarás o mundo.

E bem ou mal, atarantada e trôpega, lá volto eu a abrir os portões da quinta.

4.9.23

A Gaffe no presente


O momento de enlevo poético foi da responsabilidade de um querido amigo nova-iorquino, pai há três meses, que na tarde de já com promessas de mantas nos joelhos e paisagens avistadas da varanda de chá quente e biscoitos de manteiga, se derreteu:

- O meu filho fica horas completamente absorto a olhar as folhas das árvores a oscilar.

A imagem de um bebé pasmado com o bulício do Outono silenciou a temperatura e fez aparecer sorrisos mudos de ternura nas testemunhas da narrativa poética do desabrochar bucólico do petiz.

O momento, que fez parar o tempo, estilhaçou-se quando a minha prima, monocórdica e de olhar fixo, decidiu que tinha também de partilhar connosco o seu transportamento:

- Não me lembro se desliguei a torradeira.

As conversas rebobinaram de imediato e o barulho do chá e das bolachas reiniciou a tarefa de amornar palavras.

No entanto, o episódio desperta algum interesse.
No olhar pasmado do bebé há nada mais do que o presente, porque nada é mais do presente do que um bebé a olhar as folhas das árvores. Esta sabedoria de se olhar simplesmente é apanágio dos recém-nascidos e dos velhos. Perde-se no meio.

O desespero com que corremos para o futuro, impede que nos lembremos se desligamos a torradeira, ou, como me aconteceu em tempo que já lá vai, no meio da viagem não me lembrar se me tinha calçado convenientemente antes de sair ou se carregava no acelerador com uma pantufa de Inverno.
A capacidade de olharmos é substituída pela vontade de ver o mais depressa possível. O futuro, a noção que dele temos, porta-se como um vórtice de ansiedades e de antecipações que aniquila a nossa capacidade de olhar as coisas, atenuando até ao limite do suportável os instantes que por nós passam no presente, mas que não julgamos contributo para o futuro. Valorizamos e iluminamos em demasia o objectivo a atingir e descuramos por completo o quotidiano que, imerso numa sombra forçada, não é sentido como meio ou ferramenta que permite o alcançar do projectado.
Vivemos com pressa de chegar, não perdemos tempo, como se a nossa vida esperasse muito lá ao fundo.

O olhar que vive no Presente é apenas a sabedoria do bebé pasmado com o oscilar das folhas do início anunciado do Outono, no momento exacto em que elas oscilam, e do velho que se vai hipnotizando com o arrulhar dos pombos no rolar dos grãos de milho que naquele instante vão tocar o chão.

Nós vendamo-nos para correr.

A Gaffe infantilóide


Embora desconheça a existência de um narcisismo maligno e considere que nenhum distúrbio de personalidade dificilmente pode ser considerado benigno, compreendo que se adicione todos os adjectivos mais nocivos a um psicopata.

Trump tem os tiques oratórios de Hitler e gesticula como Mussolini e este somatório - provavelmente apenas imagético - é também uma ameaça, desta feita subliminar, inconsciente, à aparente tranquilidade que soubemos sempre fazer surgir sobre a abominação.
Trump  volta a consubstanciar o renascer do Grande Medo. Aquele que entre outros danos nos vai tornando temerosos perante a eterna maldição humana que permite, confrontados com as atrocidades que são cometidas, encontrar o esconderijo da indiferença, da inocência, da ilusão, do desconhecimento fingido, da impotência elevada a justificação, do distanciamento e da resignação.

À laia de pobre exemplo, ouvi há dois dias na televisão pública, uma senhora a defender, em debate aceso e em programa de audiências elevadas, que basta olhar para a que foi - e que poderá voltar a ser -,  primeira-dama americana, elegante, lindíssima e bem vestida, para se perceber que é feliz, e acredito que são também estes coitados resguardos que nos ameaçam de modo tão perigoso como a assinatura de Trump em decretos na Sala Oval.

O Outro é um sentir alheio a nós, alheio ao nosso. Naturalmente. Sempre foi esta uma das razões para o avançar dos holocaustos.
Para além disto, percebemos que um dos mecanismos mais antidemocráticos do planeta arrisca-se a voltar a entregar a uma criança perturbada um poder desmesurado. Trump tem a idade mental de um miúdo malcriado capaz de birras insolentes e de comportamentos primários, grosseiros, grotescos e animalescos, quando se vê contrariado.
Ver ao longe - um longe que arrepia -, um puto asqueroso com os tiques dos psicopatas que lavraram a desumanidade, a voltar a dominar um país cujo som das picaretas ecoa num planeta de chalaças e de memes e onde a indignação global facilmente se transforma numa máquina poderosa de lavar consciências, devia, pelo menos, fazer com que sentíssemos gangrenar o espaço que nos distância do Outro e perceber que fomos nós a ser interditados e que é contra nós que se erguem os muros.

Uma maçada que me leva a aproveitar enquanto posso os saldos dos voos da TAP para regressar de NY.

18.8.23

A Gaffe de férias

NY, 1958 - Paul Slade
A Gaffe, rapariga bem comportada, ajuizada, esforçada e trabalhadora, decide tirar férias.

Durante os próximos dias ruma ao infinito, zarpa para parte incerta, perde-se no horizonte, sem Ipod, sem Iphone, sem Ipad, sem ais de qualquer espécie, levando apenas o seu e atrevidíssimo guarda-roupa de veraneio, os óculos de sol Prada, o protector solar, os dóceis e macios lenços Hermès, azuis tempestade, e a exígua e provocante lingerie que usa para disfarçar a nudez.

Volta logo no início de Setembro com significativas novidades, prometendo respeitar sempre o leitmotiv do blog, ou seja, voltando às inutulidades corriqueiras. 

Agora, a Gaffe vai retocar o bâton, apurar o blush e retirar um pedacinho de saudade que lhe pousou nas pestanas.
Até já!

17.8.23

A Gaffe questionável

Não é de esfacelar os nervos, mas é maçadora a pergunta que fazem quando apanham a Gaffe pela frente:

- Então estás aqui?

Há questões, mesmo as retóricas, que mais valia não serem colocadas e embora esta pergunta tenha o seu quê de pessoano, faz uma pessoa parecer idiota se a fizer com cara de espanto e com um sorriso de madona florentina a acompanhar.
O que havemos nós de responder, a não ser com um sim, a questões deste calibre? É que há milhionésimas delas!

- Cortaste o cabelo?
- Já vais andando?
- Estás sentada aí?

São perguntas que só os portugueses sabem fazer com a maior seriedade e que só os portugueses esperam realmente ver respondidas. Não há francês nenhum que as formule e mesmo quando atacado por um qualquer vírus que lhe domina o cérebro obrigando-o a formular idiotices, não fica a aguardar a resposta. Não há inglês que não desande logo que as faz, mesmo que o inquirido tenha a resposta na ponta da língua e vontade de a fornecer. Não há alemão que espere ouvir o que há para discorrer acerca do assunto. Nenhum italiano tem pachorra para se sentar a ouvir o que se pode dissertar sobre estas questões filosóficas.

Não há!

Os portugueses gostam de arranjar uns minutinhos para surpreender com estas perguntinhas todas primaveris e arranjam sempre um tempito para debater as respostas que esperam ansiosos.

A Gaffe fica sempre com a sensação de que não estão completas, que lhes falta qualquer coisa que acabou colada ao sorriso aparvalhado com que as fazem.

- Então estás aqui, sua idiota que pensa que é finória e vem calcar bosta à terra com cara de enjoada?
- Cortaste o cabelo, sua lingrinhas de treta que agora parece um frango com aquela coisa da gripe?

- Estás sentada aí, em vez de mexeres o rabo e tratares dos bichos?

Mas talvez seja apenas impressão da Gaffe e os portugueses gostem apenas de passar por parvos disfarçados de Pessoa.


16.8.23

A Gaffe facebookiana


A principal razão que levou a Gaffe, já lá vão anos, a abandonar o facebook - para além do Tino de Rans lhe estar sempre a pedir uma cabra para o Farmville -, foi a quantidade de dramas e de pagelas que por lá se noticiavam em publicações repletas de hematomas de palavras.

Só voltaria se os que sofrem as tragédias que ali se anunciavam e publicavam – sobretudo as fotografias em férias e das férias - lhe prometessem que dariam notícia quando tudo regressasse à normalidade benfazeja. De contrário, como é bom de ver, a Gaffe ficaria eternamente preocupada, aflita, angustiada e muito deprimida com todo aquele sofrimento e boas-vontades publicados. Não dormiria nunca.

A outra razão, bem mais prosaica, era a ausência de um botão que lhe fazia imensa falta.

O who cares?! era imprescindível.

A Gaffe sentia a falta dele, quer para tocar as publicações atrás referidas, quer para assinalar as publicações das paisagens destruídas pela mira do fotógrafo, das vacances ou do churrasco na praia, quer ainda para marcar os santinhos luminosos com as frases lapidares de uma espécie de cristandade budista que acompanham as orações e os bons-dias da praxe.

A Gaffe ficava esgotada por não poder accionar este botão sobretudo naquelas doridas publicações de gente que sofre com o abandono da paixão e que ainda não percebeu que a melhor forma de prender o grande amor da nossa vida é enfiar-lhe 2 kg de cocaína na mala e chamar a polícia.

Sobram as clientes do mesmo botão contidas na invulgar colecção de frases passíveis de figurar em lugar de honra, pagelas floridas ou palco principal. A Gaffe considera que se deve exemplificar com pelo menos duas – uma velha e uma mais recente - que se destacam pelo seu mavioso conteúdo e pelo erro na atribuição do autor.

Um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para o ajudar a levantar-se.

A frase é atribuída erradamente a Gabriel García Márquez, mas pertence na verdade a Johnny Welch.

Já Oswald Spengler é realmente o dono de uma das pagelas favoritas desta rapariga tonta que a transcreve em francês por ser muitíssimo francês o conceito que contém.

L’honneur est une question de sang, non de raison. On ne réfléchit pas – sinon, on a déjà perdu l’honneur.

A Gaffe encontrou esta atribuída a Bonaparte. Benza-o Deus.

13.8.23

A Gaffe carnívora


Gosto de comer, mas sou carnívora.

Gosto de sentir os dentes a afundar em carne tenra e suculenta, de sentir os molhos aromatizados a banhar-me a boca.
Gosto de lamber nacos de carne para lhes sentir o sabor das ervas que lhes deram alma.
Gosto de lamber a alma da carne.
Gosto de sentir os ossos a estalar, quebrados pelos dentes, de sucos de carnes frescas assadas com ramos de alecrim.
Gosto de morder enchidos até espalhar todos os sabores por toda a boca, misturando-os em orgias de saliva.
Gosto de trincar, morder, dilacerar, esmagar, cortar, ferrar, mascar e misturar em carnavais de sabor e baba as carnes suculentas que afago com a língua até me enfurecer.
Gosto de sentir correr pelo queixo os fios de saliva e molho e de lamber os dedos.

Com as sobremesas sou mais sofisticada.

A Gaffe das liberdades


Todos os clichés, frases feitas, máximas arrancadas a contextos, são, diz o meu sábio amigo, brevíssimos resumos de raciocínios complexos, sínteses ou sinopses mais ou menos enviesadas do pensamento, ou breves lantejoulas arrancadas de um tecido vasto onde por acaso cintilaram.

São insuficientes, normalmente erradas, muitas vezes fomentam preconceitos, embora não deixam de ser representações enfezadas do raciocínio que as originou.

Uma das mais patetas frases feitas que giram e rolam pelos cantos todos deste circo, é a famosa a minha liberdade termina quando começa a do outro. É citada, repetida, transformada em paradigma da mais sentida humanidade e tida como monumento representativo do mais elevado sentido cívico das gentes.

No entanto, a minha liberdade acaba quando começa a do outro não é frase digna de ser repescada ou capaz de entronizar o autor.

Implica uma noção e um conceito medíocres de liberdade. Circunscreve-a. Divide-a, reparte-a em bocados enclasurados em compartimentos distintos uns dos outros. Insinua a existência de um possível limite, de uma fronteira que não é possível atravessar, porque embate com o terreno que lhe é alheio e - o que acaba por se tornar mais grave -, inclui, embora sublimada, a possibilidade de acção ou atitude menos pacíficas, porque é uso tentarmos aniquilar o que nos limita ou castra. Se a liberdade do outro destrói a nossa, é espectável que a tentemos reduzir ou, igualmente violento, que sejamos obrigados a diminuir a nossa.

O encontro com a liberdade do outro não é, não pode ser, sinónimo do fim ou da redução daquela que é nossa, porque é exactamente deste embate que surge o local de cruzamento - mesmo de opostos -, de ligação e de crescimento. Não diminui o que quer que seja. Multiplica.
O que é nosso entrança com o que do alheio e é nesse cruzar de liberdade - ou de liberdades, como se queira -, que advém a nossa estrondosa capacidade de ampliar a vida.

Quando a minha liberdade acaba quando começa a do outro, estamos seguramente a falar de dois pechisbeques que não fazem conjuntinho.


12.8.23

A Gaffe angélica


No pátio principal da casa existe um lago onde as manhãs de Inverno deixam películas de gelo enganadoras.

No centro desse lago existe um anjo de pedra.
Um dos joelhos mergulha na água enquanto o outro apoia o braço que leva a mão ao lugar onde devia haver um coração. Curvado, a asa esquerda está quase submersa enquanto a outra fechada o envolve em penas de pedra. A mão sem coração toca estendida a pele da água onde as carpas em dias de nevoeiro parecem faíscas vermelhas ou serpentes anfíbias como os deuses.

As árvores desgrenhadas desfazem, como em pecado, a ordem do jardim, a meticulosa descrição da dor da seiva, a geometria vegetal, reflectidas no espelho onde o anjo as inverte tocando-lhes as copas.
Cúmplice de todos os murmúrios. Senhor do petrificar da nódoa no silêncio que é encharcado com o perfume imenso da asfixia.

Enreda-se o frio nas asas do anjo e no corpo da água.

Sempre senti que a mão que lhe toca o peito encontra um ninho abandonado pelo coração que aprendeu o voo. Talvez ainda sinta o calor do corpo e do dormir do que perdeu, mas tem de procurar o bater de asas nas faíscas vermelhas das carpas que deslizam.

O divino delapida. Anjos e humanos são vítimas dos deuses.