5.6.23

A Gaffe no comboio


Não gosto de gares de caminhos-de-ferro, do barulho dos comboios nos carris; dos passageiros que sopram o ar do inferno enquanto esperam; do zumbido das placas corrompidas que anunciam chegadas e partidas; dos horários em papel presos por fios; das salas de espera nauseabundas onde há sempre um casal apaixonado a sussurrar; dos vagabundos como pombos magros; dos encontrões das mulheres cheias de sacos, das pontas de cigarros pelo chão; dos quiosques atulhados em jornais por onde espreita sempre um velho revisteiro; das malas com rodinhas; dos cafés de plástico sem esplanada; das fardas dos que passam maquinistas; dos relógios que nunca acertam horas nem destinos e do pescoço da mulher que olha o mudar sucessivo dos lugares, no quadro que encima as bilheteiras, e que nunca vai partir, porque não pertence a nenhum lado.

Não gosto de gares de caminhos-de-ferro. Não gosto de sair e me encontrar com doidos vagabundos a lancetar o tempo, sonhos sentados e malas onde amarfanharam o destino. Não gosto de entrar e de me encontrar perante velhas a arder de loucura. 

Lembro-me das pernas cruzadas da minha irmã que retocava o bâton, de caixa de marfim aberta e boca reflectida num espelhinho oval, sentada no banco da gare onde esperávamos o comboio que nos traria de regresso ao Porto.
Era Verão e o sol tocava a bainha do vestido solto e as sombras desenhavam arabescos no granito silencioso da espera. Nada bulia e um bagageiro rançoso encostado ao umbral da porta lambia a seda fresca das esguias pernas da mulher indiferente à canícula, a retocar o bâton de boca projectada num espelho.

A mendiga veio devagar sentar-se ao meu lado. Cheirava a urina e a fumeiro. Com olhos injectados, melados, de pálpebras descaídas com mãos gretadas e papudas, pequenas manápulas disformes, fétida boca escaqueirada e uma idade imensa que não era a dela.

Eu, no meio das duas, sentia que o universo se mostrava. A linha tinha-me no centro. No início e no fim, os dois opostos.

- Sofro da cabeça. Tenho tantas dores medonhas que quase me arrancam os olhos – explicou-me de repente.

Olhei para a minha irmã que permanecia indiferente. Pareceu-me um insecto esguio e fino. O gesto inesperado de humedecer o indicador e de o levar à sobrancelha esquerda para nela retocar um erro que tombara, acentuou a sensação de frágil e quebradiço insecto maléfico.

- Sofro da cabeça. São dores que até me arrancam os olhos - voltava a outra.

A minha irmã tem um mesquinho olhar sobre os do fim. Não os sente, não pode a eles ser exposta, não se responsabiliza. A dor alheia não deve ser mostrada crua, em ferida aberta. Pagava ao Estado uma fortuna para que ele cuidasse da protecção dos fracos.

- Também ouço vozes e de noite, na minha casa, vejo pessoas a estrelejar – continuou a mendiga de olhos injectados e palavra ensopada e pantanosa.

O comboio acabou por chegar e dentro, sentada, a minha irmã dispersa abriu revistas.

Da janela olhei, até perder de vista, a outra que ouvia vozes e via na noite gente com estrelas.

Lembro-me porque foi nesse instante que tudo envelheceu.

A Gaffe nas escadas de Montmartre

Paris - Montmartre, 1938

Em Montmartre. Éramos quantos?

Ao cimo das escadas de Montmartre o café escolhido tem redondas mesas.

A altivez da minha irmã. A invulgar beleza da mais estranha mulher que em Montmartre havia. Serpente e tigre fêmea, devastador cataclismo, punhal perverso. Vinha e calavam-se os pardais com medo. O vento erguia-se só para espalhar o perfume preso nos gestos que, contidos nela, tinham o gume das facas, a corrosão do ácido.

A minha prima a explodir. O corpo em carne atenta, em carne arguta. Carnívora e estouvada nas caçadas. Estilhaçava as ruas com o sorriso. Paris rendida, pousava-lhe nos braços bouquets de homens perfeitos. Mulher que não convém aos jantares de gala, porque surge e desvia o rumo do ar que é respirado, sorvendo tudo e todos com o riso.

A minha amiga, branca, branca, branca de alabastro e de olhar verde, cabelos de oiro antigo, mel, madeira. Travessas, travessões, frisados e ondulados, pentes e tranças, ondas, caracóis, madeixas e revoltas, espirais, motins, insurreição. A Renascença inteira no cabelo. Doía de tão profundamente bela.
Andávamos de gôndola branca sob colchas escarlate das varandas, sempre que sorria.Para agudizar a densidade do mistério, a pairar sobre ela, a eterna suspeita de um incesto.
Exilada em Florença, branca e loira, gelo branco, recolhia as mais dolorosas rosas das mãos dos homens morenos desprezados enquanto na cama antiga de lençóis com rendas o esguio e pálido irmão, nu, adormecia.

Demasiado alto, demasiado magro e aquilino, o irmão dela. O oiro pálido dos cabelos a tapar-lhe os olhos reféns dos da irmã. O fio do ciúme a atar-lhe o movimento, incestuoso e cúmplice. Falava de poetas e amordaçava todas as palavras com os dedos brancos e perigosos.  

Há segredos pousados no pescoço dos deuses que fazem da vida um perfeito romance.

O meu Amigo, o único latino. Menino só. O único perdido em moreno denso. Meridional rapaz com o mar no peito. Igual ao marinheiro da BD. Herói igual àqueles que ele amava em tiras e palavras desenhadas. Pedro, o gigante. O Czar das nossas vidas.

E eu a amar.
Éramos quantos nas escadas de Montmartre? Há quanto tempo?

Figuras soltas na arena de Montmartre a ignorar, voláteis criaturas na tenda colorida, que no circo da vida Paris é um palhaço.

3.6.23

A Gaffe dos unicórnios


É habitual a Gaffe estampar fotos de rapazes que passam o tempo a humilhar o comum dos mortais, atirando-lhe à cara a esplendorosa forma física em que se encontram e despertando a esplendorosa inveja dos mostrengos mais desfavorecidos.

Apesar destes portentos - repete-se -, não passarem por nós ao virar da esquina, pois que são criaturas parecidas com os unicórnios -, a Gaffe apanha demasiadas vezes umas cornadas destes bichos, vindas das paredes e dos muros, das páginas das revistas e do armário do vizinho de gabinete que tem posters destes colados ao fundo - do armário.

A Gaffe não fica nem excitada, nem incomodada. Isto funciona como o acordo ortográfico. Embora não simpatizemos com ele, vamo-nos habituando à grafia até deixarmos de sentir que estamos perante um erro. Acabamos vacinados e, de certa forma, imunes. Aquilo marcha sem que lhe prestemos uma atenção especial.

Ora, se o que foi escrito agora não passasse exactamente disso, uma banalidade idiota, a coisa até nem pareceria muito mal. Acontece que hoje de manhã a Gaffe cruzou-se com um unicórnio destes e deve dizer, para acalmar, que o bicho que se avistou fora de um fato  - e de facto - não se inscrevia no conto de fadas tradicional.

Era um unicórnio de todo o tamanho.

Isto prova, sem lugar para dúvidas, que, por muito que o neguemos, não passamos de umas bazófias com uns trocadilhos todos marotos em relação às excelentes formas físicas chapadas nos cartazes das montras que nos impingem, mas que, perante os factos de fatos justos, perante todos aqueles músculos em carne e osso, até as bainhas das saias se nos eriçam.

Somos umas tristes. 


2.6.23

A Gaffe em "Rabo de Peixe"


A Gaffe aprecia o que se equilibra no fio da lâmina, embora sinta demasiadas vezes que é fácil resvalar para a esquina pouca clara em que é possível algemar a atenção dos incautos através do uso matreiro do mais sombrio e pérfido que se esconde em nós.
Quando nos atiram à cara, descarnado, aquilo que não sentimos, vemos ou ouvimos, provavelmente por pudor, vergonha ou qualquer outra razão mais ou menos freudiana, reagimos da forma mais segura, escudando-nos naquilo que nos torna cúmplice do descarado que nos revela o que não admitimos assumir sozinhos e nos iliba, transferindo para o lugar do outro, o peso do que não temos coragem de arrastar às claras.
Embora se acredite que este possa ser um dos fundamentos ou uma das bases do sucesso televisivo desta série, o uso insistente desta característica entrega-lhe um pedantismo aborrecido com tendência para se pensar intocado por aquilo que usa como instrumento capaz de provocar a sedução dos outros.

Esta dimensão egocêntrica – sem a rede da genialidade – parece estar na origem de Rabo de Peixe.

Nesta série, Augusto Fraga e Patrícia Sequeira dirigem actores alegadamente topo de gama - Maria João Bastos, Albano Jerónimo ou Marcantonio Del Carlo, são exemplos da qualidade de alguns protagonistas -, cabendo a este elenco suportar e aguentar com a mestria e com talento indiscutíveis, uma série que deixa a Gaffe perplexa por não gostar das escamas.

Em todas as cenas se alça a perna e se disparam obscenidades, vulgarismos e pragas em todas as direcções, atingindo-se todo o elenco. Apesar de não ser tão original como parece, estas cenas são obviamente metafóricas. O que os realizadores apresentam nesta pequena e fedorenta nuance de um pretenso neorealismo hipster, é a metáfora daquilo que estão a fornecer ao público.

Qualquer espectador relativamente esclarecido e mais ou menos exigente, ou seja, qualquer criaturinha desprevenida e suficientemente desperta e esperta como esta rapariga, espera com sinceridade e algum entusiasmo, que tudo o que ali se vê melhore um bocadinho e que surja o resto, para além do já sabido, para além da meia tonelada de droga que deu à costa.

O que é Rabo de Peixe?

Uma série com a mania que pode ser documental, ou uma reflexão existencialista? Uma experiência neorealista fora de tempo, absolutamente falhada - mas com um bom colorista -, ou um raquítico labirinto onde todas as vias são becos sem saída na realidade? A colecção imensa e exposta de vernaculares figuras, ou um pretensioso exercício de pedantismo intelectual? Um produto destinado a fazer erguer a sobrancelha irónica de alguns eleitos de inteligência ímpar, ou a manifestação de um dueto de jovens intelectuais que se convenceu que era capaz de revolucionar o modo de fazer séries para a NetFlix? Um aglomerado de palavrões disparado à toa e a torto e a direito - que fica sempre bem a qualquer um que se quer demarcar de Manoel de Oliveira -, ou um engano empobrecido que é possível vender como se quer, fazer o que se quer, cuspir para o chão, deixar de língua de fora uma extensa cambadas de idiotas que não entende o jogo que se inventa e, depois da rapsódia de malabarismos giros, ser-se bem pago?

Segundo o que esta rapariga entendeu, é tudo isto e tudo mais que se quiser.

Não pescamos nada, logo tudo é peixe.

Depois digam que não é revolucionariamente inteligente aquela coisa.

A Gaffe no balneário


A Gaffe foi convidada para um jantar de negócios com o mano. Era uma vez o Inverno.

Não foi a sua primeira escolha, mas a enxaqueca da irmã – mais enxa do que outra coisa – impediu-a de se fazer presente e de endrominar um casal de idosos ingleses que decidiram recuperar um casarão no Douro e fazer de conta que são viticultores.

Estaciona o carro perto do ginásio onde o rapagão completava coisas que fazem suar imenso e espera.

Espera até lhe começar a doer o cashmere trench coat – estamos a falar de ingleses, convém treinar -, que usa depois de chantagear a dona. Sente-se enregelada, já que se recusa a ligar o aquecimento do carro, porque para além de ficar enjoada não sabe onde, nestes carros moderníssimos, o tubo do calor desemboca e receia respirar qualquer coisa desagradável … ou coisa que o valha.

Sai atordoada pela impaciência, já com o bâton misturado com a espuma da fúria e tenta empurrar a porta de entrada no ginásio com o glamour que sobreviveu à intempérie.   

 - Ah! ... Ainda está a fazer a aula.

Deve ser dito que fazer a aula é das expressões mais irritantes que a Gaffe conhece. Aliás, fazer o que quer que seja incomoda-a muito. Descalça a luva, toca no cabelo que para pentear em banana custou mais do que duas horas de desespero ao seu querido Miguel, traça o casaco com um ar de diva ofendidíssima e recomenda:

- Não se importa de ir lá dentro recolher os ingredientes. O homem já fez a aula, garanto-lhe.  

A mulher, de unhas de gel e fato de treino, com um carrapito oxigenado ligado directamente ao cérebro por onde emitia ondas electromagnéticas que se sentiram hostis, vociferou:

- Entre você se está com pressa.

Foi um erro pensar que a Gaffe desistia perante a ameaça de testosterona aos pinchos e a fazer alongamentos.

Entrou fazendo os possíveis por parecer Ava Gardner.

Uma doentia humidade quente atacou a leveza dos seus passos. O seu cabelo domado ganhou vida e num instante sentiu-o a encaracolar, a encarapinhar, como a juba da Barbie que a sua infância levou para o banho decidindo depois, para a secar, usar um secador na potência máxima; o seu casaco colou-se ao corpo com a pressão atmosférica e quem visse diria que pilotava um caça a uma velocidade hipersónica, porque sentia a cara toda distorcida. Escorregou no pavimento, mas esse pormenor ficou agarrado às paredes.        

Recompos-se. Uma rapariga experiente sabe que entrar em pânico faz suar e é fatal.

Abriu finalmente a porta que lhe daria acesso à sala onde a besta bufava.

Deu consigo no balneário.

O que viu não é aconselhável uma rapariga de boas famílias. Não é propriamente recomendável - mesmo não sendo desagradável de todo -, uma menina ter uma data de pilinhas espantadas a olhar para ela, que nem sequer tem à mão uns óculos escuros.

Uma situação absolutamente embaraçosa para os rapazes.

No meio do nevoeiro e depois de uma análise breve, mas muito profícua, do meio ambiente - enunciará em breve as conclusões a que chegou -, avista o maninho também com a pilinha a olhar para si e finalmente compreende o clube de fãs que este rapaz conseguiu povoar. 

Se Ava Gardner não hesita, esta rapariga também não. Avançou determinada, sorriu polidamente para os conhecidos e para as desconhecidas, agarrou no saco do mano com a desenvoltura das ginastas, voltou a sorrir e:

- Convém que te despaches. Eu já levo o saco para poupar tempo. 

Não foi brilhante, mas também não se pode exigir Shakespeare nas situações em que se contracena com pilas.

Saiu quase a desmaiar e a abanar-se toda com a luvinha e a suspeitar que desta vez o calor que sentia não era o do ginásio.

A Gaffe de um beijo

Alexandru Crisan
Um beijo, às vezes, é como um sopro de pássaro a voar rasante sobre uma planície.
Há beijos que trazem a boca carnuda como um fruto de Verão e esculpida, grossa e encorpada. Outros são de uma nudez completa, essencial para o desenho do espaço imprescindível para que se ignore o corpo que resta.
Há beijos que não damos, porque no silêncio os sentimos soar dentro da alma e porque tudo nos chega decepado, como se no caminho que vai da alma onde soam, à boca que os dá, tudo se perca e se abram flores de carne inúteis e incompletas.
Há beijos com o sabor a mel e a pólen misturados com a saliva. Mesmo quando na boca o bater do coração não seja o mesmo do beijo que é dado.

Há os que disparam armadilhas. Ouvimos silvar as balas. Quebram-se ondas do mar só com um beijo.
Há beijos que fazem tombar lírios sobre o dia, deixando-nos morrer sobre a nudez perfeita da Verdade.
Há beijo que esvoaçam pairando sobre a boca que adormece porque tem medo de acordar e não sentir mais nada.
Há beijos ensonados, com o sabor da névoa dos que sonham acordados.
Há beijos como se fossem terra ou mar ou um pedaço de pão pousado na toalha de uma boca.
Há beijos que são o traço negro das gôndolas e um abandono ao frio de estandartes.
Há outros que são mapas de outro corpo.
Há beijos desfeitos nos canais do lento arrasto da melancolia dos trajectos.
Há beijos peregrinos. Ouvem-se rezar nas catedrais.
Há beijos comédias, saltimbancos súbitos que assustam prendendo pássaros à boca.
Há outros que são esboços mortos de um poeta.
Há beijos que são a única razão para o suicídio. Deixaram de ser tudo na boca beijada. Trazem mortas as baladas que tangiam.

Talvez a noite aquática das Praças desfaça o que mora entrançado na varanda de um beijo ou talvez sejamos nós a ir embora.


Talvez o silêncio seja Deus a beijar.

1.6.23

A Gaffe no tombar da tarde


Hoje vi um pássaro cego que na cegueira quebrou a pele da água.
Hoje vi cair branca a pétala e embevecida vi o insecto morder a pérola de leite.

Há tardes assim, não sei porquê, em que a água dos meus olhos fica parada a ver.

A Gaffe saussureana


Entre muitos - e entre os mais perceptíveis -, factores que acabam por nos aproximar do estrume sobre o qual germina a coesão de determinado aglomerado de gente e que consolida uma identidade nacional, encaixam os símbolos e signos identificativos da especificidade de um povo.

O hino, a bandeira, um monumento, ou mesmo uma paisagem, são signos em que o significante e o significado obedecem na perfeição às referências e aos parâmetros enunciados por Saussure – diz quem sabe.

Indignamo-nos com alguém a balbuciar o hino do país que representa, trocando as palavras do refrão ou tropeçando na melodia, porque este desconhecimento fere a consciência de identidade de grupo e de identificação com determinado conjunto de valores, comportamentos, cultura e mais uma quantidade de outras histórias que não se dizem para não prolongar a paciência até à exaustão. Queimar uma bandeira é, pelas mesmas razões, um insulto e uma desonra. A necessidade de reconhecer com clareza as ligações saussureanas existentes nestas situações é, mais do que habitual - e o habitual é imprescindível para que exista comunicação, mesmo a mais básica.

Hastear uma bandeira invertida para além de ser expressão de terra ocupada - conclusão já saussureana - é, simultaneamente, um lapso sausssureano.

Um país, um Estado, um povo, uma criatura, exprime-se também através destes signos e destes símbolos - diz-me um amigo que destas coisas sabe. 

Destruída a aliança entre significado e significante, através do não reconhecimento de uma destas faces da moeda - o que implica a quebra da identificação da outra -, o terreno que se abre é o da conjectura que permite todas as divagações, que incluem interpretações renovadas, mas que não deixam de estar coladas ao que atrás se diz em relação à dupla significante-significado, tocando mesmo as quase mitológicas - no sentido que Roland Barthes atribuiu ao mito.

Não interessa saber se é propositado ou se é lapso o hastear de uma bandeira invertida. O que se torna interessante é perceber que o símbolo - o signo -, alterado o significante, origina uma colecção razoável de congeminações que reproduzem significados diversos, nem todos apetecíveis.

Diz-me um amigo que sabe destas coisas.

É neste pressuposto - provavelmente errado -, que é dificil aperceber-me agora do lugar a que pertenço.

signos que foram lentamente desconstruídos e destruídos, provocando avalanches de novas e múltiplas interpretações que me constrangem.

Paris, por exemplo, alterou-se, quebrou a cumplicidade entre significante e significado que eu reconhecia. A Torre Eiffel - retiremos à sorte -, invadida por pastilha elástica e por Macron a tentar ser líder de coisa nenhuma, é o signo que já não corresponde à minha cidade. Há cada vez mais lixo amontoado nos Champs-Élysées. Há migrantes desprezados e rotos e esfomeados, há refugiados em completo abandono, há cada vez mais sem-abrigo, há miséria, há degradação humana e indiferença total perante o facto, nas ruas e avenidas da cidade-luz que se apagou. O Louvre é cada vez mais visto como depósito de roubos, de pilhagem, de prepotência francesa sobre culturas esmagadas e o paternalismo que usa para justificar e perpetuar a retenção de obras-de-arte que não lhe pertencem, deixa de fazer sentido - sabemos, por exemplo, do culto, o respeito e o cuidado quase obsessivos que os gregos dedicam desde há muito ao seu património cultural, embora se reconheça que o iraquiano se perdeu em grande escala, por não haver tutor. As escadas de Montmartre deixaram de ter poetas e boémios e pintores, não há mansardas há muito, há corrimãos de seringas e os bouquinistes atiram livros ao Sena embrulhados em plástico, juntamente com o crack perseguido pela polícia, a que não está ocupada a varrer das ruas os coletes amarelos e seus sucedâneos da reforma.

É correcto afirmar ter lido e sentido erradamente o signo Paris.

A aliança que fiz entre significado e significante não resulta agora, partida em duas metades visíveis e tornadas antagónicas, incongruentes, quase ilegíveis.    

Mea culpa, pois que sou tontinha.     

O Douro é, por sua vez, outro signo que perco com os tiros das luzes dos paquetes turísticos.  

O rio em agonia. Desvirtuado o seu correr pelas pacóvias instâncias de turistas deslumbrados com as selfies que o arrancam do sessego. As margens violadas pelas pisadas das gordas matronas que urinam agachadas longe dos barcos de recreio. Os ossos de frango assado, os restos de churrasco, de gordura despejada nos papéis atirados para as árvores que pingam plástico. Os socalcos que não aguentam o peso dos velhos obesos, de chapéus de palha e pena alemã ao lado, ébrios pelas provas que provam a indignidade dos assaltos que executam com a ganância de palatos não cuidados, emproados e arrogantes, fellianianos, cobardes, com um medo ainda discreto do povo, arrastando, atrapalhados e toscos, as mochilas da degradação.

A minha casa, retirada há muito dos roteiros dos flash, tornada inacessível por uma arquitectura que obriga a paisagem a fechar o cerco sobre os muros, sofre a ameaça de se tornar alvo desabrido de americanos bêbados, de ingleses que acreditam que a podem calcar, de chineses e de japoneses que lhe roubam raízes para fazer chá.  

O belíssimo signo da pinha de pedra ou ferro que enfeita as varandas, portões e jardins do norte do país e que nos avisa que somos bem-vindos, na minha casa foi erodindo, transformando-se num estranho objecto de pedra que se assemelha a um gigantesco brinquedo menos próprio.   

Mea culpa, pois que sou parvinha.     

Os meus signos quebrados, largam-me nua, sem saber onde fica a minha casa, próxima da criação de um outro mito.

E no entanto, há lugares que trazem unidos os contrassensos, as suas negações.
De encontro a eles pasmamos perante a nossa própria antítese, em frente às nossas margens duplas, defronte às nossas mais contidas incongruências.

A maior cisterna da casa dos meus avós - da minha casa? -  é um lugar quase improvável, quase negado por existir daquele modo. Para ali chegar é preciso percorrer caminhos íngremes, subir escadas de granito tosco e desbravar a coragem de nos irmos sorvendo nos espaços cada vez mais afunilados que gotejam sussurros e bater de asas de pássaros, de pedras e de folhas.
É sombrio o caminho da cisterna que não se avista a não ser já quando estamos muito próximos.
Guardada por duas árvores guerreiras, a planície aquática, de platina, recolhe o fio de aranha de água que a alimenta. Reparte-se cortada pelo espelho e deixamos de saber onde somos parados, se no lugar que respira ou no reflexo inumano e lancetado.

É o lugar do silêncio em paradoxo. O lugar onde se adivinha, no equilíbrio quase perfeito das ausências, o caos da nitidez das árvores e a ruptura mutilada dos sentidos.

É o lugar mais próximo de mim, porque é o lugar contido na vida dos gigantes que habitam o interior da casa. Igual a eles, a alma da cisterna afunda, no outro lado, a negação das coisas.

Tenho de reler Saussure enquanto choro.


31.5.23

A Gaffe envelhecida

Para a Paula Vasconcelos

Aiden Shaw

Ao deparar com meninas telegénicas e as suas constantes preocupações em publicitar a cor do cabelo patrocinado por uma marca de tinta, trepam-me à memória, espalhando-se e contaminando o meu dia, as cabeças de Fernando Ruas e de Victor Constâncio e permito-me concluir que se às mulheres é reconhecido o direito de mudar a cor da juba, já aos homens o caso adquire tons mais complicados.

As cabeças de Fernando Ruas e de Victor Constâncio, por exemplo, parecem ter sido dominadas por uma aranha negra, velha e outrora peluda ou, em alternativa, terem um rato morto a servir de cabeleira.

Admitamos que aquilo é deprimente.

Desenhar o penteado com um marcador preto produziria o mesmo efeito. A tinta tinge o couro cabeludo e, no caso do primeiro, apeçonhenta o bigode. Ficamos perante dois casos de toucas de banho incorporadas, negras, funestas e retintas e nitidamente falsificadas, como se os chineses tivessem plagiado a estrutura capilar e a pilosidade de um jovem latino e tivessem colocado o produto à venda nos mercados e nos átrios dos municípios.

É um erro crasso confiar num homem que pinta o cabelo daquela forma e acredita, patético, que consegue convencer os pares e os parceiros com o negro daquilo que outrora foi cabeça. É tão idiota como acreditar nos que arrastam de forma confrangedoramente dolorosa - uma dor de alma - os fios da nuca para a frente da testa, criando uma estranha e assustadora arquitectura pilosa que lembra um ovo de extraterrestre num filme qualquer de ficção científica de terceira categoria ou pornográfico, onde não há categoria nenhuma.

As meninas podem tingir-se com a cor cereja, porque há sempre a possibilidade de nos distrairmos com os decotes e com os vestidos dois números abaixo do que seria necessário para não ficarem comprimidas, mas um homem não podem usar a porcaria que as raparigas publicitam sem correr o risco de passar por idiota, desonesto, inseguro e incompetente.

Aiden Shaw

Há incomparavelmente mais probabilidades do cabelo grisalho, ou mesmo totalmente branco, poder ser o mais deslumbrante e fascinante convite à aventura e ao embarque naquilo que é o transatlântico mais poderoso do universo: a maturidade consciente e assumida do homem por quem perdemos bússolas e astrolábios - não convém contudo generalizar, porque nos lembramos de repente do engenheiro Sócrates.

Aiden Shaw prova de forma inequívoca a tese defendida. Embora, diga-se, tenha um passado conturbado e controverso, muito dedicado a fitas pouco recomendáveis, é uma espantosa criatura susceptível de povoar os sonhos menos brancos de uma rapariga com a cabeleira cor de cenoura, ou de um rapaz mesmo careca e apesar deste portento não passar por nós ao virar da esquina, não é o único unicórnio a passar por aqui. As meninas façam o favor de atentar em:

Patrick Petitjean por Joe Lai

Patrick Petitjean

ou em Philippe Dumas

Philippe Dumas

A Gaffe acha muito bonito dizer-se que cada ruga que nos surge é uma história contada.

É evidente que este lugar-comum não se pode aplicar a gente que já nasce velha, a seres com idade para gostar de marcar presença nos festivais de Verão e cara de quem já passou por todos, nem a criaturas com uma pele de rabinho de bebé, mas que fazem de Manoel de Oliveira - no estado presente - uma criança de cueiros.

A velhice é como o dinheiro. Enriquecer e envelhecer exigem estratégias precoces que permitem atingir o estatuto fornecido por rugas e fortuna com o poder de quem tem histórias para contar, mas que prefere autorizar que sejam narradas ou fotografadas pelos outros.
As histórias de cada um são narradas pelos mais ínfimos actos, pensamentos, ditos, acções, posições e atitudes. As rugas são apenas inexoráveis narrativas celulares.

O tempo, dizem, é uma criatura implacável. Pensar contrariá-lo envelhece-nos imenso para além de nos poder transformar em mutantes de silicone.
O único modo de contradizer o passar dos anos é sentir que temos demasiadas rugas para fazer determinada coisa e agarrar no bom senso e fazê-la.
É uma perfeita tolice declarar que a vida começa aos 30, aos 40 ou aos 50!

A vida começa quando decidimos e conseguimos ignorar a plateia.

30.5.23

A Gaffe nos anos sessenta

Vic Seipke
Mais de várias - enfim, algumas -, décadas antes de eu nascer, a fotografia de Vic Seipke cumpriu o seu destino, provavelmente similar ao traçado para aquelas que hoje, sessenta e alguns anos depois, povoam as fantasias menos exigentes de públicos que uma rapariga de boas famílias não está autorizada a referir sem se benzer.

O ginasticado rapagão terá sido um menino de sua mãe - tão jovem! que jovem era! - capaz de ostentar provas de insistente, consistente e reveladora actividade física que, acreditamos ao observar pormenores, não se confinava apenas às quatro paredes de um ginásio, estirando-se com certeza pelo chão, elevando ao tecto apensas manigâncias e passando num ápice para o uso de toda a mobília.

É indefinida a idade do retratado. Embora sendo eu uma criatura incapaz de atribuir idades ainda que aproximadas a potentados destes e dos outros, provavelmente o rapagão não terá mais de trinta anos. Se usarmos o conselho do querido Guterres, Vic Seipke é agora um nonagenário.

É evidente que não tenho intenções de me tornar tenebrosa, sinistra, ameaçadora, lúgubre e absolutamente parva, arabizando considerações acerca da crueldade do passar do tempo, da impotência da beleza perante a decadência, da fatalidade da queda, da vacuidade da vida, da irresponsabilidade do culto do efémero, ou da desagradável e maçadora homogeneização do destino do universo perante o fim. Gosto imenso do efémero, do irresponsável, do que é inutilmente belo, do vácuo existencial, da queda bem almofadada - também gosto de dinheiro, mas suponho que esta informação é despropositada neste contexto -, e faço tenções de gozar todas estas sumptuosidades sem as conspurcar com as piolhices que o mais tinhoso romântico literário se encarregou de glorificar.

É claro que se neste momento Vic Seipke fosse convidado a posar nos preparos do seu passado, o resultado não seria o melhor, por muitos pesos que o rapaz continue a levantar, e suponho que mesmo num calendário solidário, despido de bombeiro, não acenderia um fósforo. Seria apenas um fofo muito querido, com imensa coragem e genica, que foi capaz de se despir de preconceitos em nome de uma causa e ó que linda que a velhice pode ser.

Mas, meus amores, a velhice é deprimente. Acho que é uma coisa que devia acontecer apenas aos inimigos. O assunto ficava arrumado e havia mais paz no mundo.

Este magnífico exemplar de testosterona solidificada, mesmo que não a tivesse direccionado como nos apraz, é agora um velho, muito velho, muito velho, muito podre - se tivermos em consideração que o que aos trinta fazemos, aos noventa o pagamos. No entanto, no auge da sua envergadura, o rapagão depilava-se como se o amanhã fosse ali já – nunca de Alijó, onde os homens ainda fazem questão de manter todos os pêlos -, usava sem constrangimentos ou receios uns calções que certamente se fartava de despir, muito apertados e bastante interessantes na óptica da observadora e sabia moldar o seu bronzeado para que o seu perfil proeminente fosse passível de ser bem avaliado e apreciado.

Os anos sessenta de Vic Seipke fazem mais sentido que uma vida inteira a carpir a implacabilidade do tempo que passa, passado no culto da morte que está com certeza em cada esquina e nos torna iguais, despidos de tudo. O pó, a cinza e o nada chegam antes do tempo neste carpir doente, neste choro mórbido, que entope o nariz, que impede até mesmo uma fotografia parva, mas que glorifica os instantes solares em que somos agora.

Envelhecer é inevitável, mas a inevitabilidade não atenua a aversão. É exactamente por isto que fico irritada quando ouço, ou leio, gente a ameaçar a vida com promessas e certezas de morte. Dir-se-ia que não conseguem ter uns instantes de felicidade sem os macularem com a morbidez da certeza da morte. A ladainha é sempre a mesma: Que importa a beleza, que importa a Viagem, que importa a felicidade aparente ou não, que importa viver de forma solar, se acabamos todos desfeitos em pó.

É absolutamente lúgubre, altamente inibidor e perfeitamente estático.

Quero viver todos os instantes de modo fabuloso. Quero lá saber do medo de viver implícito nas criaturas que ameaçam a vida abanando espantalhos fúnebres.

A Gaffe invejada

Kathy Ager

Uma das características das mulheres pouco espertas é a inveja.

Isto, simplificado e tornado raquítico, é mais ou menos assim: os rapazes gostam de futebol, os gays de ver montras e o mulherio é invejoso.
Não há forma de contornar o assunto e de negar a evidência. Uma rapariga tem entranhada no DNA a capacidade de invejar a outra e é capaz do piorio só para arrasar a parceira. Eleva a inveja ao estatuto de obra-prima. Pode disfarçar com meia dúzias de coisinhas mansas e palratórios amorosos, mas está sempre pronta a picar, a venenosa.

Quando a Gaffe lhes apresentou o qualquer-coisa, as mulheres que conhecia ficaram muito contentes. Porque o qualquer-coisa era um tipo correcto; porque era mais velho do que ela uma data de anos e isso era uma vantagem; porque ficavam radiantes por a ver finalmente estável; porque o amor é lindo; porque - isto era importante - o homem era bem posicionado - embora a Gaffe nunca o tenha achado grande coisa na cama; porque assim arranjava entradas para todo o lado e até porque conhecia o tout Paris.

Uma alegria.

A Gaffe chegou a temer que lhe caísse na cabeça, qual piano tresloucado e solto, aquela felicidade toda. Andou por ali, mas nunca convencida.
Acabou por descobrir facilmente que o mulherio se roía todinho de inveja e ciúme. Aquilo era noites sem dormir a matutar na forma de espantar o homem. A Gaffe percebeu também que os limites para o ataque eram bastante alargados quando o homem começou a receber SMS das ex-namoradas - grande lista que o paspalho tinha -, a declarar que estavam tão felizes que até lhe queriam dar os parabéns pessoalmente e de preferência as duas da manhã atrás das escadas.
Nunca deu grande importância àquilo. Não estava a morrer de amor. Sempre soube defender o que lhe diz respeito e é dela, e, enquanto forem, aqueles que dormem consigo na cama.

Amélia dos olhos doces,
Quem é que te trouxe grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca,
Na pele e na roupa, perfumes de França

Quando o qualquer-coisa levou um chuto, as amigas entristeceram todas.
Para trocar de lágrimas organizaram uma festinha com vinhos de todos os lados - as mais pindéricas beberam Coca-Cola - e uma porcaria de queijos franceses ressequidos na casa dum amigo comum, com o qualquer-coisa como convidado de honra, para o rapaz mais facilmente esquecer o desaire.

As cabras.

Pouco tempo depois, a Gaffe conheceu um rapazinho engraçado, com mais ou menos a sua idade. Nada de grave. Tornaram-se grandes amigos. Tudo muito casto e muito recatado. Nada que uma freire não fizesse no escuro da cela, qual Mariana Alcoforado.

Ora o que é que acontece?

Pois é verdade. O mulherio que sim; que agora é que é; que o moço é mais novo; que estão tão felizes que até desatam a disparar orgasmos nas tábuas do povo.
A Gaffe deixou andar. Que se danassem.
Não passaram muitos dias para que o rapaz principiasse a receber em casa convites manhosos para festinhas e para bailaricos e mesmo para os desfiles da saison. A Gaffe nunca os recebeu. Não era extensivo.

Por isso a Gaffe pensa que é melhor começar a ir ao futebol ou a lamber montras. Lamber só, que isto está tudo tão caro como os queijos franceses servidos por cabras invejosas.

A Gaffe num cais


Há homens que de tão habituados a esperar deixam de chegar seja onde for.
Outros há que de tão habituados a partir a cada instante nunca chegam a lado nenhum.

São os homens que sabem escolher o cais perfeito e que conhecem a hora exacta da partida e da chegada que, mesmo esperando, sabem que a viagem termina sempre ao nosso lado.

29.5.23

A Gaffe frutada


Um septo arrogante. A cor da carne, carmim e luzidia. Uma humidade polida. Uma rigidez que cede, branda, tocada pelos meus dentes. Uma polposa, bojuda, carnuda superfície limpa, deslizante. Um fulgor. Uma meninice erguida em desafio. Um suco, um sulco, uma rajada, um sumo, um jacto, um ímpeto.

Ou nádegas minúsculas por onde roça a língua.

Ah, Como eu gosto de cerejas!

A Gaffe sem regressos


Deitava-me no chão de madeira encerada e permanecia horas inteiras a aflorar as tábuas do soalho com a polpa dos dedos.
Com a cabeça tombada num dos braços que me servia de almofada, pousava o insecto de uma das minhas mãos na pele do chão e traçava labirintos de jardins inventados.
Tudo era simples, como o silêncio que me apaziguava. Ficava pousada no chão como um inevitável facto e entre o soalho e o meu corpo havia um lençol de plumas estendido que impedia a mácula, atenuando o encontro agressivo com o chão.

Estas minhas ausências despertaram a indignação da minha avó que me proibiu aquelas imobilidades suspeitas, evocando vestidos que se sujam - o meu vestido de linho azul com miosótis bordados a cheio pela Jacinta -, ou entraves à contradança das empregadas.
As tardes de mapas no soalho tornaram-se mais espaçadas e de certo modo diferentes. Deixou de existir um manso toque para passar a haver um risco rígido, um raspar nas frinchas deixadas pelas uniões das tábuas ou nos lanhos que a madeira antiga deixava irremediavelmente por curar. Tentava escavacar o chão, procurando lancetar ou aprofundar as feridas da madeira. A cera quinzenal colocava compressas nestes rasgos, mas nas tardes distraídas da minha avó voltava a abrir aquela solidão de madeira. Quando o sol deixava as sombras soltas pelo chão, acabava pertença do soalho. Os reflexos de luz toldavam-me os olhos, sentia a pele misturada com brilhos dourados e os fios do meu cabelo enganavam os veios da madeira.

A memória dessas tardes chega hoje como lenços a acenar, isenta de som, com se a mudez daqueles momentos contaminasse as recordações que deles tenho. Talvez a responsabilidade desta ausência de ruído não seja minha. Talvez o silêncio fosse um erro exterior a mim.

Agora o soalho não é encerado de quinze em quinze dias e mesmo o ranger das tábuas parece diluído.
Pesa de perfume o ar que não respiro agora, mas que me entra baço nas narinas e há escuro desperto nas rajadas de luz que entram pelas janelas. Não há vento e sinto as folhas esbaforidas a rodopiar lá fora. Estou aqui e sinto frio, como se tivessem aberto as portas todas e as correntes do ar enfurecidas viessem galopar o meu espaço.

Onde fiquei? É mesmo aqui que existo ou estou perdida nas folhas do meu álbum?
Vou pairar, tenho a certeza, voar ou levitar e chegar ali, à minha infância, e, contudo, calco o chão agora como se dele nunca tivesse erguido os pés.
Atravesso a sala. Desvio-me dos móveis. Sei-os de cor. Os meus dedos esbarram nas esquinas e escorregam depois na pele de vidro da jarra onde matavam as mimosas. Não tenho medo. Agora não há perigo. Posso quebrar tudo o que quiser sem temer que escondam o meu erro. Já não fico com segredos repartidos e com o medonho medo dos meus cúmplices que ganhavam o poder de me moldar ou arrastar para culpas divididas.

Como se soubesse agora do que tenho a culpa.

Toco nas paredes, encosto-me de manso, de modo que os meus ombros se misturem com a surpresa de me ver aqui, com esta espécie de ondular que sinto e que é memória ainda do berço que baloiçava nos braços da minha avó.

Caminho devagar.

É grande, a sala, mas tudo é tão pequeno. O modo de eu a olhar é tão diferente! Mesmo a poeira batida pela luz não tem doirados e não fica presa nas patas do tempo. Tomba como uma sonâmbula no soalho e nada resta para esvoaçar depois. A minha escala é outra. Já cresci. Os meus olhos antigos não os uso agora e não consigo inventar estradas para deixar passar as tribos que inventava, entre a porta grande - grande, grande, imensa, enorme, que se abria para a minha avó entrar em contraluz - e o esconderijo do meu peito.

Nada tem a dimensão da infância.

Nada fica igual, quando da porta ao quarto se cavam pesadelos e as distâncias se traçam no interior da vida. Nada permanece, a não ser o ido.

Não há regressos. Não há normalidade.

Deito-me no chão. Ergo os braços, estendo as mãos para o tecto. Deixo-as tombar depois vazias e adormeço.

27.5.23

A Gaffe nas batalhas


Sabendo-se que esta família caça em conjunto, fácil se torna concluir que nessa operação ela é por norma o isco, a manobra de diversão e o engodo.

A verdade é que nunca esse papel a incomodou, chegando mesmo a ser um deleite participar na montagem das armadilhas. Admite que não é de todo distinto ou elegante ser usada para que se atingirem objectivos que lhe são alheios, mas considera sempre divertido verificar que em todos existe uma etiqueta com um preço, que ela faz acreditar que é elevado, embora suspeite que - cada vez mais -, toda a gente é um saldo.

É angélica, suave, pestaneja, aparenta ser inofensiva e não tem nas patinhas as garras visíveis. É fácil fazer com que inclinem a jugular desprevenida. Depois é com os outros.

A minha prima não gosta de vencidos.

Nunca ousou forçar uma queda, nunca se atreveu a desferir o golpe, mas não tem ilusões. Ninguém foge ao escrutínio. Todo o passageiro é revistado, mesmo que o bilhete seja apenas de ida. Tem o agradável defeito de, sempre que por si passam mortais, os pesar e repesar na balança do jogo da guerra.

Não é sangrenta, talvez seja apenas má pessoa.

Aprendeu a sobreviver neste vale de feras, consciente disto, com um rapaz de veludo que lhe foi apresentado demasiado cedo. Foi analisado ao pormenor e concluiu-se que o rapagão pertencia ao plano estratégico de caça familiar e que nos pratos da balança pesava mais do que seria de esperar. Foi insinuado que alguém devia distrair a vítima enquanto os bastidores se movimentavam. Aceitou contente. Falar de Genet, comentar Monet, criticar Stravinsky ou acarinhar Fellini, nunca foi complexo - Se não sabe, inventa.
Acrescentou a estes prazeres, o facto do rapaz respirar e se sentir o mundo a tremer. Sobretudo o hemisfério sul.

No entanto, sofreu um revés. O padecente confidenciou-lhe, logo ali na esquina de Darwin, a sua inabalável fidelidade ao espapaçado Amor da sua vida que ignorava o sofrido.
Tornou-se intocável a alma do petiz.
O amor sempre lhe inspirou um desmesurado respeito e jamais se tornaria cúmplice do espoliar de alguém apaixonado.

Soube, pouco tempo depois da sua recusa em fazer de conta que seduzia o triste, que aquele amor eterno e inabalável se tinha escapado por minutos e que, com os melhores cumprimentos da eternidade, tinha tentado pousar no meu irmão. Apanhou-o deitado no chão, de pés levantados e pousados no peitoril da janela e, não tão subtilmente como seria de desejar, enfiou-lhe a mão dentro das calças. Abalado, o meu pobre irmão nunca foi o mesmo, recusando aproximar os pés seja do que for. Stress pós-traumático, dizem os sábios.

A partir desse instante, a minha prima descobriu - para além de ficar a saber que a fidelidade é uma bicha muito subjectiva -, que nada, mesmo nada, a impediria de jogar. Gosta de jogar, o que não a torna excelsa companhia.
Enfraquece resistências, afrouxa cérebros, distrai argúcias, impede análises e faz tombar as paliçadas. Pérolas e perfumes são armas que conhece em demasia. Usa-as com perícia e destemor. Depois dos muros derrubados, perde o interesse.

O resto é dos abutres.

Não se comove. Nunca se comoveu com a chacina. Os que tombam são sempre os mais idiotas, os que acreditam no Poder e desconhecem que é exactamente nele que se encontra esconsa a mais potente ameaça de derrota. Estão vencidos, porque não sabem que se trava uma batalha, porque cegaram com o brilho das próprias armaduras, ou porque não entendem que às vezes - muitas vezes -, a maior vitória não exige luta.
Agrada-lhe sentir que pertence aqui, ao grupo dos carrascos, daqueles que executam imbecis.

Não é aconselhável aceitar o seu convite para o chá.

25.5.23

A Gaffe de pernas e espadas

É de importância capital o que nós raparigas fazemos com as pernas.
Esquecemos frequentemente que são, por muito incompreensível que para nós seja, uma das armas que dispomos para reforçar vitórias.

São punhais, são serpentes e são rios por onde poetas e flaneurs fazem desfilar todas as palavras, traçando todas as rotas, deixando-se ferir por doces lâminas de carne e envenenar pelo néctar suave que desliza invisível rumo aos tornozelos.
As nossas pernas, minhas caras, são muito mais do que dois instrumentos que nos levam simples e directamente do ponto A para o ponto B. Neste percurso, cabem labirintos e o erro de os ignorar ou desbravar pode atingir-nos de forma fatal fazendo-nos perder dois magníficos trunfos.

No jogo, os homens conquistam usando artimanhas tontas, acreditando que o poder simbólico de uma gravata Gucci ou de um Armani perfeito, os torna eficazes. A guerra pelo poder no masculino é feita sobretudo com homens vestidos. A nudez masculina, quando usada na guerrilha, jamais acorrentará uma vitória ao tempo. Os homens lutam vestidos e nem sempre é segura a almejada conquista. As mulheres podem - devem - usar todos os recursos que um machismo idiota lhe entregou de mão beijada.

As pernas de Tina Turner - mesmo quando vagamente cobertas por redes de seda - eram, nos campos das batalhas que se tornam palcos, dois dos mais possantes e incompreensíveis mísseis de que há memória. Sempre detectados pelos radares, mas nunca recusados por amigo ou inimigo.

A voz era o som destas espadas. Magnífico. 
 

A Gaffe descodifica

Jon Whitcomb
Quando um homem nos coloca ao pescoço uma gargantilha de esmeraldas e brilhantes, pode apenas querer provar que usa um cartão de crédito de dimantes ou que gosta de coleiras que cintilam.

Quando nos serve uma salada com três tipos de alface fazendo questão de nos explicar como cultivou cada um deles e nos garante que se for ele a preparar a lampreia à moda do Minho que jaz em postas num alguidar de barro, mergulhada em alho, louro, salsa e dois vinhos, NÃO disparamos cozinha fora todas arrepiadas, de olhos esbugalhados, desgrenhadas de medo do monstro necrófago, escorregadio e com umas ventosas alienígenas no terror de uma das extremidades, ficamos a saber que o nosso caso estar a tornar-se uma coisa muito séria.

24.5.23

A Gaffe no tempo dos colégios



Era uma menina doce no tempo dos colégios. Uma menina que ainda não tinha descoberto o tigre que solto caça e rasga a presa com veludo e garras de cetim e harpa. Tinha a quietude dos meigos que é a mais segura casa dos que tímidos afloram a superfície das coisas com cautela. Tinha a compostura das senhoras e a mais frágil solidez de alma que me lembre.

No início dos dias dos colégios, havia recital.

Havia um menino e um piano, uma rapariguinha triste no som de um violino, uma bailarina branca como cal, uma canção de ninar que entardecia e um pombo perdido a esvoaçar na sala.
Eu recitava:

E veio o Outono com passos de doente
E dedos de penumbra e suavidade
Pôr sobre a Natureza, lentamente,
Pétalas, espargir de uma saudade.

E a triste se ficou, serenamente,
Como quem vê perdida a mocidade.
Mas tão linda se fez à luz poente
Que se tornou menina sem idade.

E triste me ficava a ver-me ao longe no poema tonto que não compreendia.

Longe, os dias dos colégios são a memória desse Outono que vinha adoentado. Não os tenho a não ser no que me vejo ao longe, a recitar. Pequena como pétala ou como a penumbra que se encosta às portas do que agora sou, a ver-me ao longe.
Dentro desse tempo dos colégios e dentro dos Outonos que vieram, os olhos do meu avô eram luz poente. Faziam com que a menina não tivesse idade.
Dentro dos Outonos que vieram, nos outros recitais que eu não entendo, o meu avô debruça ainda o olhar sobre um poema e, mesmo por dizer, di-lo comigo.

A Gaffe numa caçada

Mirko Hanák

A Gaffe considera o amor abnegado uma coisa do outro mundo.

Uma criatura engole as lâminas, se o seu grande amor quiser deixar crescer a barba. Uma criatura rasteja toda depenada, se o seu grande amor tiver decidido colar umas penas nas costas e fazer de conta que voa.

É bonito.
Não há grilhetas.

A alforria do amor da nossa vida é coisa dele e há que não quebrar os cristais da autonomia. Não ocupamos o espaço que é do outro, porque estamos cientes da total independência e da santa liberdade que não podemos conspurcar com pieguices nossas, com a mania que temos de arrancar com os dentes o coração de quem amamos e deixar o infeliz ali descarnado, com um buraco no peito, bem visível, para que toda a gente perceba que dali já não leva um pirolito.

Uma criatura deve ser abnegada, pois que as coisas boas são todas muito principescas, muito Saint-Exupéry.

É difícil contra-argumentar, a não ser se formos nobres inglesas numa caçada à raposa. É provável que se dispare. 


23.5.23

A Gaffe imperiosa

Billie Holiday  canta “Strange Fruit"  no primeiro Clube integrado de NY, 1939 - Gjon Milli

Todas as mulheres possuem um desenvolvidíssimo espírito científico, pese embora apenas algumas o usem para tentar dissecar a alma alheia. Por norma os instrumentos usados não incluem a inteligência, posto que para a operação fica aquém do esperado e, no máximo, o que se obtém é a pele do observado, que fica sempre bem no soalho de madeira.

Há no entanto casos em que é possível tentar chegar a resultados interessantes, se o analisado for um conceito.
As mulheres são peritas em elaborar pareceres, a formular noções e a construir máximas que os homens gostam de usar depois. São piçarras e tonys carreiras das nossas melodias e chegam aos festivais já vencedores. Deixamos, porque não importa o resultado do júri. O que nos dá gozo é a certeza do engano dos jurados que se revelam ainda mais tontos do que na realidade são.

Os conceitos que nós, mulheres, fazemos florir são como papoilas. Surgem às centenas, em campos magníficos e dão ramalhetes perfeitos, porque efémeros. É lógico que cada uma de nós escolhe a papoila que mais condiz com o seu tom de pele, com a cor do blush, com a cor do dia do decote, ou com a forma que lhe parece próxima da perfeição sonhada.

Malgré tout, é sempre uma papoila que é escolhida.

Esta inteligentíssima - apesar de modesta que sou, devo assumir -, introdução, chega a propósito dos conceitos de elegância feminina que provocaram um olhar bucólico sobre este campo plano e tão singelo onde pulula, aqui e ali, o escarlate das florinhas.

Há que pegar no bisturi.

A elegância - a Elegância -, pode ser analisada com objectividade científica. É possível arrancá-la do somatório dos distintos conceitos que são construídos por cada uma de nós e tornados de certo modo distintos uns dos outros. Há a elegância da mulher magra e alta, esguia como a haste de um lírio. Há a elegância da que veste sem ser vestida por Valentino. Há a elegância construída pela fleuma gélida perante incêndios de barracão. Há a elegância da maturidade que constrói castelos de reserva e discrição e há outras que não se dizem por exaustão.
Por norma, alia-se, mesmo inconscientemente, a elegância de uma mulher à sua biografia. No entanto, a Elegância pode ser isolada, pode ser objectivada, pode ser detectada sem as interferências usuais e sem as premissas que habitualmente nos levam a resultados viciados.
Uma mulher pode ser Elegante independentemente do mundo que a olha, para além de si, para além da sua história ou da sua voz. Neste pressuposto, pode ser Elegante uma psicopata, uma assassina, uma inócua dona de casa, uma apaixonada pelo funk, uma vendedora do Bolhão - estas são quase todas Elegantes, quando calmas! -, ou uma candidata a Prémio Nobel da Paz.

A Elegância é um palimpsesto. Talvez exista uma facilidade relativa em separar camadas, desagregar substratos, definindo-os como eleitos na subjectivização do conceito, mas no final - e afinal -, o somatório torna-se indistinto, quase invisível, quase mistério, porque, diz o aviador, o que realmente importa não se vê.
A Elegância não é portanto uma projecção do olhar do Outro. É o reconhecimento do Outro da existência imperiosa e única de alguém.
Sentimos a Elegância, somos Elegantes, porque somos, nós também, palimpsestos, mas nesse aglomerar, nesse sedimentar de histórias que são nossas - apenas nossas e sem domínio algum sobre o olhar dos outros - existe um elemento essencial que atravessa cada substrato, solidificando o todo.

A inteligência.

Nenhuma mulher é Elegante se não for inteligente e logicamente madura - aos dezoito anos escolhemos sempre o perfume incerto ou cantamos sempre a canção errada.