21.10.24

A Gaffe com Néstum e mel


Inês - Os passarinhos foram feitas pelo Pai Natal para mostrar como seriam as flores se voassem.

Branca - Mas se as flores voassem ia ser uma confusão para as borboletas!

Inês e Branca (6 e 5 anos)

A Gaffe de soslaio


Uma das situações mais constrangedoras vividas pela Gaffe é aquela que a enfia no elevador com um rapagão desconhecido, mas de fazer pecar a Madre enclausurada das Serviçais Ceguetas do Imaculado. A Gaffe fica com os nervos arrepanhados quando o homenzarrão olha de soslaio e a apanha a fazer o mesmo. Este catrapiscar quando se repete de forma suspeita faz com que a Gaffe se eleve até ao décimo andar, mesmo tendo de sair no terceiro.
É uma situação tenebrosa, mas mais frequente do que se imagina e pode acontecer em qualquer lugar onde somos obrigados a ficar paradas. Normalmente acaba num sorriso amarelo e simpático, mas há ocasiões em que nos apetece atacar e estraçalhar a roupa, como se fossemos cães raivosos, daqueles que se babam enquanto arreganham os dentes ou que têm blogs que se resumem a comentar o que se diz por aí, por ali e por aqui.
Estes olhares de soslaio são intrigantes e fazem a Gaffe desesperar de hesitação. Nunca sabe se o rapagão ao seu lado está tão inibido como ela ou se, pelo contrário, o que ele quer, já ela sabe, porque quer o mesmo que ele, só que nenhum sabe se coincidem na oportunidade do desejo.

Às vezes a Gaffe pensa que se não seria melhor termos uma sirene encastrada – UUUUIIIIIIIIIIIIIII ... ... - que disparasse quando nos cheirasse a flirt. A Gaffe suspeita que andaria a apitar por tudo quanto era canto, mas, pelo menos, evitavam-se estas trocas de olhares embaraçosos que dão com a Gaffe em doida toda corada e constrangida, à espera que se rasguem as vestes no primeiro solavanco do elevador.

18.10.24

A Gaffe no sobe e desce


Não temos tempo. Corremos desatadas para os elevadores de forma a chegar mais depressa onde nem sempre queremos.

Odeio elevadores.

Há-os de variadíssimos feitios, mas aqueles que me irritam e destemperam os nervos são os mais antigos que trazem geralmente apenso um velho antipático e mal fardado, de unhaca afiada presa no mindinho, de cigarro nauseabundo seguro nas gengivas e que nos pergunta enojado para que andar queremos ir, como se dessa informação dependesse a segurança do edifício ou nos achasse demasiado burras para carregar no botão certo. Uma rapariga entra nestas coisas de ânimo leve e é apanhada por grades suspeitas que se fecham claustrofobicamente encerrando-a numa espécie de cela que abana por todo o lado, fazendo-a recear o encontro desagradável com poços de ar ou o desabar da geringonça com cabos partidos e ferros empenados.

O horror.

Os que se seguem na escala do meu ódio são os demasiado modernos, de aço e velocidade supersónica. Entramos, encostamos levemente o dedinho ao botão e somos impulsionadas em milésimos de segundo e de uma forma absolutamente esmagadora para o local que quase sempre nunca é o desejado, porque nos enganamos ao aflorar o tão sensível indicador do piso.

Enquanto que os primeiros nos rejuvenescem, porque são de época e ser-se de época é meio caminho andado para o encarquilhamento, os segundos envelhecem.
A velocidade com que se movem, quando subimos, permite que a lei da gravidade opere maldades atrozes numa rapariga. A força com que somos projectadas para cima coloca-nos o umbigo no meio das maminhas, deixa-nos o cabelo oleoso e arranca-nos as cuecas - no caso de as usarmos. É uma canseira a recuperação e nem sempre os resultados são eficazes, porque nunca ficamos com tempo para retocar a maquilhagem.
Quando descemos, a velocidade é tamanha que acabamos por concluir que o século XVIII foi penalizado por não ter elevadores desta espécie que esculpiriam as cabeleiras das senhoras em menos de um segundo. É também uma inconveniência o facto de ficarmos cegas por causa do pano da saia que se levanta e não apanharmos, quando o foguetão se abre, as caras de surpresa dos que o esperam ao depararem com uma rapariga esperta com um penteado de época - meio caminho andado para o encarquilhamento, - de saia levantada a todo o vapor e com as cuequinhas - caso as usarmos - transformadas num imenso fio dental.
Apesar de tudo, estes foguetões, na descida, oferecem uma vantagem sobre os primeiros: entregam-nos a esperança vã, mas deliciosa, de ficarmos altas e de pernas longas com um cabelo vasto e volumoso, leoas sem cuecas prontas para matar.
O meu problema é igual ao de todas as raparigas que - de saia travada e sem mais nada que lhe asfixie a força da sua natureza feminina - não se querem maçar subindo escadas sem que nenhum rapaz de fazer erguer um morto de tão giro, as siga logo atrás.

Nós, raparigas espertas, devemos usar apenas estas máquinas quando nos transportam ao céu ou nos fazem chamuscar as asinhas num inferno. O resto é mais andar, menos andar.

17.10.24

A Gaffe rapariguita


Cresço tão devagar que há uma pequena rapariguinha sempre à minha porta, como se me viesse pedir qualquer coisa.

Já não me lembro como era. Já não me sei miúda e no entanto basta olhar para a rapariguita que à minha porta olha para dentro das coisas. Dentro dos olhos da menina eu apanho-me a crescer tão devagar que me sinto a pedir que me levem ao colo ou que me tragam doces de amora ou de cereja.
Às vezes não cresço nada. Fico igual à pequena rapariguita que vejo. Apetece-me jogar à cabra-cega pela vida fora. Deixar que me atem os olhos com um lenço branco - tem de ser branco - e continuar cega a tactear o escuro que vem dentro das caixas dos presentes de Natal até se desatarem os laços. Até que eu e a criança que me vem pedir coisas os desembrulhemos para soltar a luz cá dentro.
Às vezes cresço mais que a menina que me olha. Não gosto de crescer mais do que ela. Fico minúscula e assim minúscula não jogo à cabra-cega, porque o lenço branco que me tapa os olhos escorrega e deixa-me ver o chão onde pousaram os presentes de Natal ainda nus, sem laços, sem escuros dentro.
Já não sei se nós, eu e a pequena rapariga que fica sempre à minha porta, gostamos de crescer. Olhamos uma para a outra muitas vezes. Ela pergunta-me por mim, como se me viesse pedir qualquer coisa. Nunca lhe respondo. Não sei se cresci para lhe dizer que nunca me encontro, que não sei de mim, que talvez ela me traga no bolso, junto das nódoas de cereja e de fitas de cetim com que juntas atávamos as prendas de Natal.

Às vezes fica à minha porta, como se viesse pedir para não crescer.

16.10.24

A Gaffe dos velhos amantes


Vivem como quem pisa uma alameda de vinhas trucidadas, sem esperar o mosto, sem esperar beber, porque o vinho está nas suas bocas. Cresceu como um corpo, ocupando tudo.
As suas terras estão marcadas. Jamais suportarão outros vestígios a não ser os deles.
Só ele sabe dela e só ela sabe que nele as montanhas olham os abismos e espreitam as vertigens sem fazer vibrar o ar que as rodeia.
Têm secretos recantos onde as suas vozes ecoam claramente e os seus olhos volteiam dentro delas.
Sabem ao sabor do pólen espalhado nos lençóis.

São velhos como só os amantes sabem ser.

15.10.24

A Gaffe dos amantes


A rapariga procura aconchegar-se no ombro dele, sentados na esplanada friorenta, enquanto ele folheia sem interesse um livro.
O rapaz sente-lhe o perfume do cabelo e a textura suave do casaco que a protege das breves rajadas de vento.

Amam-se quando o silêncio é suportado a dois sem sobressaltos.

São duas criaturas estranhas aos olhos de quem passa. Estão, como se procurassem encontrar ali o que lhes fugiu da alma sem lhes ter deixado a consciência de existir de tão fugaz e fugidio. Andam pelas ruas como os pássaros que pousam indiferentes nas abas dos canais, nos troncos corroídos das marés ou nos lanhos de luz abertos nas vielas. Passam como perfume nas linhas desenhadas pelo que fica. Depois de passarem, fica a moribunda esperança de colheremos aquilo que não chega a ser matéria de alma por ser mais indizível, ainda mais raro, intoleravelmente mais difuso.

Na esplanada, ele folheia um livro enquanto ela repousa no seu ombro.

14.10.24

A Gaffe marca o lugar


Sempre disse não ser uma grande fã do desporto. O máximo que consigo é observar com prudência a movimentação dos corpos e, de vez em quando, saltar de entusiasmo moderado no sofá onde me estatelo, quando encontro um ou outro atleta mais absorvente.

No entanto, sou fã dos balneários. Não pelas razões óbvias e marotas - que, não nego, também contribuem para esta minha malandra inclinação -, mas porque penso que todas nós, raparigas, antes de qualquer modalidade ter início, com alguns minutos que antecedem a entrada dos rapazes, devíamos espargir pelos cantos do reservado e masculino recinto algumas gotas do nosso perfume.

A nossa marca indelével agiria, subliminar, inconsciente e freudianamente, na concentração dos deuses dos estádios e, quando fossemos, displicentes, com o papelinho na mão, pedir-lhes um inútil e descartável autógrafo, seria mais fácil despertar a memória insidiosa que soubemos esconder nas horas vagas e vazias dos másculos balneários e acabaríamos com toda aquela testosterona aos nossos pés.  

Nesta operação, eventualmente proibida pelas Sociedades de Psiquiatria, é aconselhável que nós, raparigas leigas, distingamos com extremo cuidado as instalações onde cometemos o crime. De contrário, corremos o risco de - porque confundimos, aquando do borrifar do nosso pecado, a estrebaria com o balneário - em vez do garboso atleta, termos de lidar com o cavalo inconvenientemente apaixonado.

A Gaffe ajardinada


Apareçam floridos, rapazes!

A Primavera surge a cada passo que é dado e mesmo sabendo que o Outono foi queimando o verde, não se esqueçam do Poeta e acreditem que há que colher todas as flores em cada jardim que se atravessa, para chegar junto de nós de mãos vazias.

11.10.24

A Gaffe amanhecida


I
O dia amanhece frio e azul, devagar, no pássaro pousado no parapeito da janela.

Do quarto virado para Norte vejo ainda floridas as sardinheiras espanholas, vermelhas a morrer como um tango já dançado.

A mistura dos perfumes do Douro e da luz calada do dia que começa enlaça os cortinados, como amiga sentada a ler com os sons de um piano ao lado.

Tenho a obrigação de ser feliz.
II
O vento impede o voo das gaivotas. Planam paradas no ar que cheira a maresia ainda mais salgada do que a que chega à varanda do meu quarto.

Da linha em que o mar encontra o céu há uma barra cor de salmão, pálida, e depois o azul claro, tão claro que é quase transparente sobre a folha de platina da água mansa.

A mesa que escolhi é da cor das laranjas sem sabor. A luz agarra os gomos das cadeiras.

Há uma mulher feia de castanho a rabiscar papéis com tinta verde. Duas adolescentes amarelas a pipocar segredos e o rapaz de avental branco e dentes aramados que me serviu o café negro e espesso, encostado ao balcão a olhar as rochas cheias de luz cinza.
Estendo as pernas, cruzo os braços e a cabeça tomba para trás.

Fecho os olhos e deixo que a rapariga de sorriso cor-de-rosa me foque finalmente e faça clique no telemóvel vermelho e ansioso.

Estou vertiginosamente só. Não tenho medo.

A manhã pousada e fria, cor de opala e luz, vem pentear-me.

10.10.24

A Gaffe na urgência


Dizem os monges que o nascimento de uma criança prova que Buda continua a acreditar em nós.

Festejemos pois cada instante que vivemos.

Na dor, se for completa, germina a sobrevivência. Às tempestades resiste o sopro ténue dos que recomeçam. O confronto com os desertos acorda-nos a força de uma gota de água e o cyclamen, a violeta brava, a árvore das camélias, florescem em pleno Inverno.

É urgente emudecer os que como macacos enjaulados atiram colheradas de dejectos, de azedume, de secura e de amargura, de desapontamento torpe e derrotista, da janela de um segundo andar escuro e incontornável aos transeuntes a quem ganharam rancor.
É urgente calar os velhos que não são o do Restelo, porque o do Restelo é muito mais do que as amarras que o fizeram, mas os velhos que nos cospem a acidez do ressentimento gratuito e sem motivo que não resida apenas na derrota, que corrói até o sonho de nos vermos a sonhar.
É urgente desacreditar a moralidade de cabelo emproado e laca na bondadezinha que esconde dentro do missal estampas pornográficas e exibe nos dedos pios a solidariedade da indiferença denunciada por um discurso cliché.
É urgente festejar a mais ínfima alegria, a mais banal das pequenas coisas, a mais despercebida forma de se ser feliz, mesmo com lágrimas.
É urgente festejar cada minuto, cada instante, cada pedaço de tempo que vivemos.
É urgente agarrar a vida sem a inevitabilidade fadista dos profetas da derrota.
É urgente cobrir a alma com as cores que quisermos e fazer dela bandeira desfraldada para os outros.
É urgente festejar os dias.
É urgente celebrar todas as datas.
É urgente acreditar que a cada instante nascemos e que cada minuto que chega é a prova que merecemos que alguém acredite em nós.

É urgente ser optimista. Há tanto tempo para se morrer depois!