1.10.21

A Gaffe de Halloween

Será esta a única vez que a Gaffe se refere ao Halloween. Não porque não simpatize com a data, mas porque o tema está seguramente exaurido, apesar de, convenhamos, sempre ter sido uma comemoração que a implicou, custe o que custar às egoístas e invejosas defensoras deste festejo.

O Halloween foi e sempre será ruivo.

É difícil ser-se singular em relação a um tema que se torna viral. As tontices repetem-se de canto para canto e passamos de uma esquina onde se esbardalha uma bruxa para tombarmos noutra repleta de gatos pretos ou abóboras e não adianta muito reportarmo-nos às raízes do tema, porque ainda mais maçadores nos tornamos.

Esta incapacidade de tratar por escrito determinado assunto, por estranho que pareça, tem solução.

Ao contrário do que é heróico declarar, depositando na ara do mais elevado despojamento de alma o cordeiro do nosso sofrimento interior, a escrita é um processo susceptível de aprendizagem.

A escrita não é intrínseca a nós. Não é um código genético. Não nasce connosco. Aprende-se a escrever bem depois de termos aprendido a desenhar as letras doando-lhes sentido. Não incapacita o prazer, elevando a dor profunda ao pedestal do inevitável e é suspeito quem afirma que deixa de respirar se passar um dia sem a dor do parto da escrita.

A Gaffe sempre considerou disparatado o que afiança que sofre horrores todos os instantes com as palavras que abrem chagas nos dedos, descendo e rompendo o peito em ferida aberta, à procura do papel. Transformam escrever num episódio de prisão de ventre. Mesmo os masoquistas sofrem menos.

É balela. Se estes defensores da autoflagelação deixarem de escrever, não acontece absolutamente nada.

A Gaffe sempre pensou que o processo de escrita é um jogo de ligações executado numa oficina de trabalho árduo. As regras aprendem-se, memorizam-se, entranham-se, cumprem-se ou violam-se - para as desrespeitar é preciso que as conheçamos em profundidade -, exigindo depois um esforço hercúleo, que não implica por obrigação a presença da tortura, se tivermos a veleidade ou a ambição de produzirmos, pelo menos, qualquer coisinha parecida com um texto literariamente aceitável.

A Gaffe sempre considerou uma tontice os Cursos de Escrita Criativa, até perceber que um dos seus queridos petizes, filho de um dos seus casais favoritos, tem um professor de Português que é simultaneamente formador neste tipo de actividade que é, assume-se, condenada mesmo por quem se move com perícia nestes meandros.

Curiosa, a Gaffe decidiu investigar.

As atitudes pedagógicas que subjazem à escrita criativa vocacionada para a faixa etária mais próxima do chão, parecem lógicas, eficazes, muitíssimo produtivas e sobretudo facilitadoras do processo que permite o surgir de um texto inovador, original e bem estruturado.

Não produzirá, é provável, génios da literatura, mas, para além de cultivar a capacidade crítica do menino/leitor, pelo menos dificulta muito o aparecimento de burgessos que acreditam piamente que se o mundo ignora a papelada que preenche com rabiscos é apenas por cegueira e humana iliteracia.

O recurso, por exemplo, a jogos ardilosos, como o Baú das Palavras - onde a criança recolhe substantivos à toa para com eles ter de formar frases completas -, o Jogo do Lenhador - que obriga ao corte de palavras numa frase demasiado longa, sem que o sentido se perca -, ou O Elo Mais Forte - que faz com que se procure a frase que ligará duas outras díspares e muitas vezes contraditórias -, permite que a criança se inicie com prazer e de modo lúdico na extraordinária vastidão da escrita.

Como será evidente, os expedientes são inúmeros e nada melhor do que assistir a uma aula para deles nos aproximarmos. É bom que se passe a ouvir com maior cuidado a famigerada frase não negues à partida uma ciência que desconheces.

A infância da Gaffe não teve aulas de escrita criativa e lamenta o facto. Se as tivesse tido não hesitaria agora em escrever sobre o Halloween, convicta da sua capacidade de não referir bruxas e gatos.

Assim, abóbora!