A tarde disposta ao silêncio espalhada no chão.
O
meu corpo na penumbra, de vigia. Os meus olhos na sombra, os meus sentidos no
escuro.
Escondida
na obscuridade de um murmúrio, há na minha boca o sabor da transgressão. Um
sabor rugoso de madeira ressequida. Tenho o direito de tentar compreender a
minha ausência nos universos velhos femininos desta casa. Quero saber do ritual
benéfico e do feitiço maldito, da prática secreta, da velha e encoberta fórmula
de encantar.
Nesta tarde que se deita sobre a cama. Tarde de menina morta de
olhos fechados, de caracóis pousados na almofada e colar de pérolas tombado,
vestido azul escuro, enfolado, com pequenas flores, raminhos bordados.
Um fio de voz imperceptível, o fio de uma aranha, um fio de
navalha. O fio ténue e fino e perdido da voz da tarde a desfiar as feridas, a
traçar os mapas e as marcas da dor, a descrever as mágoas. No corpo da tarde pousam
as palavras, os dedos e os medos sussurrados das mulheres. Em cada palavra que
não quer ser dita tudo parece consumado e o silêncio é maior que o resto.
O
entardecer é colocado no lugar habitual empurrado com um gesto dócil.
É
o momento dos desertos em que a solidão ondula e a dor prevalece como um cardo.
A casa inteira anoitece devagar.
No
Douro há sempre tempo para tudo e dentro deste tempo compreendo o ritual diário
destas mulheres, aquela quase dança de ternura e de deslumbre, aquele quase
crime, aquela quase entrega de desmesurado amor. São estas mulheres que trazem
encarcerado o corpo da casa. Ficam à espera que o silêncio chegue, ainda que
fugaz, e nos conte, contando no corpo da casa, das marcas sofridas nos corpos
de carne.
Depois
de novo o silêncio.
As mulheres do Douro são silêncios.
Aqui
é bom o silêncio. É bom estar calado. É bom não dizer. É bom não ter corpo. É
bom não pensar.
É
bom ser só a casa.
Porque esta casa foi adquirindo uma entidade própria e uma
determinação indómita. Foi, enquanto o tempo envelhecia, sobrepondo o desejo
das pedras à vontade do dono de modo que se deixou de perceber quem domina
quem. Como no poema, o senhor tornou-se servo, por amor.
Esta
casa vai construindo as ordens, vai solidificando o poder da pedra sobre a
carne, vai erguendo o seu esmagador domínio sobre quem a deixou de ter, porque
ela o tem. Decide quem entra, escolhe quem será expulso e responde agressiva àqueles
que sem o seu consentimento se atrevem a passar. Não passam se forem ameaça.
Não passam se lhe causarem ciúmes. Não são acolhidos se arriscam o amor
daqueles que são dela. Não permite a invasão da mais ínfima partícula de almas
estranhas. Impede a luminosidade dos pássaros e a cumplicidade dos amantes.
Esta
casa contém o interdito e cuida dos fantasmas.
É a ela a que chego agora. É dentro dela que retorno a mim, que
me sinto dentro, por dentro. É dentro dela que fico em mim, a sentir o partir
dos outros, dos que ficam a latejar nas pedras presas nas solidões que tombam
como gotas grossas das águas das árvores depois de chover, em silêncio.
É nesta casa que me recolho em mim e que reaprendo os pequenos
passos, os mais breves gestos. Pormenores.
É
nesta casa que toco nas pequenas, pequenas, pequenas, coisas. Nas toalhas de
linho com monogramas bordados. No perfume de hortelã dos aventais da Jacinta
agora morta. Na jarra de porcelana com peixes no dorso. Na cigarreira de prata
sobre a escrivaninha. No papel de carta opalino pousado perto da imagem de
marfim de um deus antigo. No constrangido marcador do livro que ninguém acaba.
Nas folhas secas de tília mal florida que esperam por tisanas de abandono e de
anoitecer. Na abóbada das mãos erguidas da imagem da Virgem do Amparo secular
- que o seu santo manto
nos cubra e nos proteja, hoje e para todo o sempre. Na tristeza que
entardece este silêncio de gato enroscado no chão quente das cozinhas. No peso
dos cortinados que se fecham sobre a luz cinzenta das copas de chuva dos
candeeiros de mesa. Nos murmúrios das madeiras nocturnas e sozinhas.
É nesta casa que me deito dentro da sombra onde isolo a minha vida, no toque das pequenas coisas descobertas e neste poder da pedra sobre mim, sobre uma Primavera desgrenhada que emerge espantada e por iluminar.
É nesta casa que afloro as mais pequenas coisas esquecidas e é dentro delas que pressinto a urgência da memória para nos salvar a vida.