São coisas feias, os cacarecos.
Encontram-se em qualquer feira de artesanato, mesmo ao lado
da banquinha das bugigangas de arame e contas de plástico e em frente da que
vende garrafas vazias com coisas de cortiça dentro, tudo vendido por pessoas
muito simpáticas, com vestidos de padrões tribais, frescos, amplos e a
arrastar, rastas por todo o lado, restos do que fumam no biberão do puto e
batuques à disposição. Abancam no passeio das quermesses, mesinha montada e
coberta com toalhinha bordada a ponto de cruz, espapaçam nos cantinhos da net
fotos foleiras com legendas fofas e dizem que são artesãs e que a tralha que
produzem com rolos de papel higiénico e cacos colados é artesanato.
Entre os quinze e os vinte anos achamos aquilo giríssimo e
compramos um ou dois exemplares, mas nessas idades também fazemos topless sem primeiro ensaiarmos ao
espelho.
A partir dos vinte, passamos a desejar ter nascido em 1755,
mesmo que isso nos dê uma certa idade, para que o terramoto escaque aquelas
tralhas.
Aos trinta decidimos fazer um desvio descomunal só para não
nos cruzarmos em Bragança com os mesmíssimos artesãos que nos impingiram os
mesmíssimos cacarecos em Faro, na nossa desprevenida mocidade.
Não são práticos, normalmente estão tortos, desengonçados,
desequilibram-se, por muito que façamos não encaixam em lado nenhum e tudo o
que se coloca dentro fica a saber a barro. Coisinhas mimosas que elaboram no
aconchego do lar, tudo feito à mão, tudo muito reciclado, tudo muito
imaginativo, tudo muito fofinho e tudo muito porcaria.
Uma rapariga esperta procura de imediato as portas de
emergência quando ao longe esta ameaça artesanal é vislumbrada.
Por muito sofrimento que possa causar, apena são pechisbequeiros. Manufacturam
pechisbeques.
O artesanato contém no âmago uma sabedoria inimitável -
velha tantas vezes, - e impossível de se expandir e multiplicar como um piolho.
É impossível ser separada do artista que lhe entrega a excepcional marca que o
identifica, o torna único e reconhecível, tornando-se capaz de representar
determinada colectividade. A joalharia, a teclagem, a cerâmica ou a cestaria
são susceptíveis de se aproximar dos conceitos de Arte, porque incluem
características específicas essenciais à mais objectiva e exigente análise de
teor artístico.
Artesãs são, por exemplo, Rosa Ramalho, Júlia Côta, Júlia
Ramalho ou Fernanda Braga, se quisermos escolher apenas oito mãos
femininas. Pechisbequeira é
a senhora que elabora esmerados macaquinhos porta-chaves de tricot.
Seria excelente que se percebesse em definitivo que
considerar artesã uma pechisbequeira é
o mesmo que considerar artesanato aquilo a que a moçoila saída de uma
adolescência espigada faz - imbuída do desejo de permanecer por desflorar até
ao casamento, - num recanto de uma noite mais esconsa, alapando-se no bando de
trás da carripana do namorado, dedicando algum tempinho a trabalhos manuais.
Por muito que custe aceitar - e não custa nada - a rapariga não é artesã, nem
demasiado virgem. Faz pechisbeques.
Um extraordinário exemplo da diferença abismal entre artesanato e pechisbeque é ilustrado pela minha muitíssimo querida amiga Nymla.
No trabalho desta maravilhosa sueca existe uma aproximação mimética
insuperável e admirável com a terra primordial, eivada de mitos e lendas, rituais
e ancestralidade, que trespassam as suas máscaras iniciáticas e os seus mágicos
e enigmáticos adereços. A aproximação, a identificação, do objecto criado com o
húmus iniciático, com a raiz primígena e com o arquétipo, provocam, aliados a
uma incontestável qualidade, a intersecção da nossa alma longínqua com raiz
comum da nossa humanidade.
A viagem através do seu trabalho é infindável e a cada passo
somos agarrados pela maravilha da projecção da Terra universal.
É uma artesã. Com toda a certeza.