11/10/2016
Cheiram a alho as mãos, mas o olhar tem rosmaninho e tem
palavras com travo de pimentão-doce e outras de canela ou de carvinho.
Se deixar correr a água pelos dedos desaparece o cheiro. Que
te fiquem os anéis e leve a água o gosto empeçonhado.
A mulher calada, com rosmaninho nos olhos e riso pé de salsa.
Tinha-a visto separar os dentes de alho, espalhando cada um
na mesa de madeira, escolhendo os fortes, cheirando e farejando cada casca,
cada polpa, cada película branca e fina como véu de noiva camponesa. Tinha-a
visto sorrir e cravar a unha na esbranquiçada meia-lua que me dava a cheirar
depois de apunhalada e recortada.
- São estes os melhores, menina. Veja como largam sumo
quando os corto. Quer ver como se faz? Experimentar?
Pego na meia-lua e tento com a vontade e as unhas de menina
mimada, nascida em faz-de-conta, lanhar a pele, a película que protege e
recobre a polpa carnuda daquele aroma inteiro e prepotente.
A mulher sorri. Senta-se no banco de madeira e de
mãos nos joelhos afastados. Observa-me com atenção redobrada.
- Use a faca para cortar primeiro o lado mais grosso do
dente. Vai ver como depois é mais fácil amanhar o resto. Pode esmagar tudo com
a faca deitada sobe o alho que logo sai a casca ou pode descascar primeiro e
picar tudo fino.
- Quem te ensinou tudo isto?! Tu sabes tudo!
Ri-se.
Que ninguém lhe ensinou nada na vida, que os pobres, menina,
já nascem ensinados.
- Não é o cheiro do alho que trago nas mãos, é o cheiro
dos pobres. Olhe a menina que mesmo se esmagasse todos estes trastes, não lhe
ficava réstia de cheiro nos dedos. Já nascem a saber os pobres, minha menina.
Rebentam as águas à mãe porque sabem que há que as ver correr debaixo dos moinhos.
Depois, e a rir, tira-me das mãos os alhos por partir,
empurra-me para fora da cozinha e fecha-me na cara a porta do domínio.
Levo os meus dedos ao nariz. Farejo, procuro, inspiro,
cheiro, aspiro, insisto e volto a farejar.
São inodoros.