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Fernando Vicente |
Li, em tempos que já lá vão, um Tratado do Riso.
Um livrinho que não me despertou especial interesse e que não deixou rasto do autor. Não era com certeza um dos clássicos que sobre o riso deixam tombar a negritude pesada das suas reflexões, porque recordo que o considerei passível de ser lido enquanto se espera pelo avião.
Apesar do facto, a obra não deixava de ser curiosa, enumerando com algum afinco, segundo o autor, as razões que originam o riso, apontando - entre tantas e muitas -, o engano, a desconformidade, a deformidade, a dissonância, a desarticulação do real, o equívoco, as ocorrências que se deslocam da norma a que obedecemos e as situações que embora dissemelhantes são assimiladas como idênticas e lidas como consequentes, ocasionando o mal-entendido.
Admito que nunca me aproximei das razões que originam o riso. Prefiro vivê-lo sem razão.
Rimo-nos sobretudo do mal. Invariavelmente. Do mal feito, do mal acabado, do mal compreendido, do mal formado, do mal comportado, do mal educado, do mal elaborado, do mal explicado, do mal controlado, do mal conduzido e de todos os males que a vida produz. Rimo-nos de nós, que estamos errados. Suponho que o riso funciona em todos estes casos como escudo protector e mesmo o reconhecimento - risível, ele também -, do erro, seja ele qual for, é capaz de nos couraçar de gargalhadas, evitando um provável colapso.
Rimo-nos, porque procuramos incessantemente o equilíbrio, a estabilidade, a normalidade, a transversalidade e a certeza de que estamos integrados num sistema coeso que rege uma panóplia de roldanas que fazem mover o quotidiano seguro, perceptível e inteligível. É ameaçadora a eventualidade que abala, afronta ou desconexa a nossa leitura comum do real e, talvez por isso, uma gargalhada se transforme tantas vezes num murro.
Perante a desordem, que deixa o não racional abalar as conexões que temos com o real normalizado, atamos o riso às margens do lógico e esperamos estar seguros do outro lado do que sentimos errado.
Quando a minha prima, pela Avenida Brasil - numa das suas raríssimas incursões pelo pensamento -, travava comigo uma pequeniníssima batalha no campo de guerra dos Impressionistas atacando com o pincel do rímel todo o sol levante -, tropeçou numa beata de cigarro - uma rapariga de boas famílias comporta-se como a princesa ervilha, de quem, aliás, é descendente directa -, saindo disparada no meio de um das meus eloquentes argumentos a favor de Monet - que ficaram, Monet e argumento, parvos e suspensos, na ausência repentina de interlocutora -, projectando com uma velocidade estonteante um dos Manolo Blahnik que atingiu um olho do Homem do Leme; provando à plateia que tinha um gosto irrepreensível na escolha das cuecas; entregando ao espectador a certeza de que era merecedora da medalha de ouro em voo em comprimento e demonstrando, para além de tudo, ser possuidora de um talento imenso como imitadora de gaivotas esgrouviadas, confesso que só depois de a ver aterrar alguns metros depois e já com a carteira nos dentes e colar enrolado nas orelhas, consegui controlar o riso, travando a quase asfixia que me vinha assolando deste o exacto instante da descolagem da pobre esbardalhada.
Seja como for, e pese embora toda esta inútil teoria, depois de se erguer, a rapariga fez como o sol em Monet. Levantou-se e brilhou.
O riso encontra sempre os mais inesperados aliados unindo os opostos mais irredutíveis.
Rimo-nos, porque procuramos incessantemente o equilíbrio, a estabilidade, a normalidade, a transversalidade e a certeza de que estamos integrados num sistema coeso que rege uma panóplia de roldanas que fazem mover o quotidiano seguro, perceptível e inteligível. É ameaçadora a eventualidade que abala, afronta ou desconexa a nossa leitura comum do real e, talvez por isso, uma gargalhada se transforme tantas vezes num murro.
Perante a desordem, que deixa o não racional abalar as conexões que temos com o real normalizado, atamos o riso às margens do lógico e esperamos estar seguros do outro lado do que sentimos errado.
Quando a minha prima, pela Avenida Brasil - numa das suas raríssimas incursões pelo pensamento -, travava comigo uma pequeniníssima batalha no campo de guerra dos Impressionistas atacando com o pincel do rímel todo o sol levante -, tropeçou numa beata de cigarro - uma rapariga de boas famílias comporta-se como a princesa ervilha, de quem, aliás, é descendente directa -, saindo disparada no meio de um das meus eloquentes argumentos a favor de Monet - que ficaram, Monet e argumento, parvos e suspensos, na ausência repentina de interlocutora -, projectando com uma velocidade estonteante um dos Manolo Blahnik que atingiu um olho do Homem do Leme; provando à plateia que tinha um gosto irrepreensível na escolha das cuecas; entregando ao espectador a certeza de que era merecedora da medalha de ouro em voo em comprimento e demonstrando, para além de tudo, ser possuidora de um talento imenso como imitadora de gaivotas esgrouviadas, confesso que só depois de a ver aterrar alguns metros depois e já com a carteira nos dentes e colar enrolado nas orelhas, consegui controlar o riso, travando a quase asfixia que me vinha assolando deste o exacto instante da descolagem da pobre esbardalhada.
Seja como for, e pese embora toda esta inútil teoria, depois de se erguer, a rapariga fez como o sol em Monet. Levantou-se e brilhou.
O riso encontra sempre os mais inesperados aliados unindo os opostos mais irredutíveis.