26.10.22

A Gaffe à portuguesa

Artur Pastor

Nos primeiros Domingos de Inverno, amontoa sobre a mesa as carnes e os enchidos.As batatas, as couves e as cenouras num cesto de verga pousado no balcão.

Torna-se soberana no confuso domínio. Critica o modo como foram curados os nacos de porco e leva ao nariz as chouriças de sangue e de colorau à procura da origem do fumeiro. Desaba com cutelos sobre o frango caseiro, que o matou ela sozinha e sabe que o criou para este fim e trucida as postas de vitela, a carne entremeada, com faca de assassino, cabo de madeira e lâmina que primeiro afiou, e arrepiou, contra uma outra. Quebra costelas, chamusca a orelheira, golpeia com a força de titã, focinho e chispe e de mãos sangrentas e ar de psicopata dá destino cru à carnificina misturando tudo na panela enorme com água a ferver medonha de bruxedos.

Depois suspira.

Enquanto espera descasca as batatas gordas e as cenouras.

- Só começa a cheirar bem, menina, quando lhe enfiar os enchidos.

Pica com um tridente as carnes a ferver. Toma-lhes o gosto. Nada de sal. Perturba a natureza do cozido e os enchidos bastam para disfarçar a vaga.Na outra panela cozem-se batatas. As cenouras adocicam a luxúria e as couves moribundam verde-escuro.Num arremesso, empurra com os dedos mergulhados no caldo que borbulha todos os enchidos que critica.

- Olhe que bem que cheira!

Eu olho e pasmo. A cozinha parece engravidar de odores. Barriga de luxúria que a dona acaricia com mãos de pedra e olhos de matrona benevolente e farta.   

- Agora é só vazar para as travessas. A menina vá chamar as suas gentes, que está pronto.

Rega com a água em que ferveram carnes, as batatas, as couves e as cenouras que dispostas em redor fumegam estafadas e ergue em triunfo a travessa enorme, pesada de aromas.

Eu como sem alma, sem dó nem piedade, sem pudor ou termo, sem pejo ou clemência. Como até morrer ou pensar que morro de tanto comer.

- Guarde um lugarzinho para o leite-creme. Está como gosta, torrado com açúcar, mas do mascavado. É um gosto vê-la! Só de a ver comer, ficamos sastisfeitos. Bem se vê, menina, que é mais portuguesa que o resto dos outros. Só comem cenoura e debicam umas niquices de passarinho-pombo. Um desperdício, Deus lhes valha!

De braços cruzados sobre o avental, de sorriso aberto e olhos com luzes que piscam e tremem e tremem e piscam, sabe que cozinhou para mim e apenas para mim, que os outros que restam debicam só pieguices e são passarinhos.