A colisão entre o urbano, cosmopolita e sofisticado e o
Douro mais íntimo e desbravado, tem os seus momentos divertidos.
A minha irmã de Manolo Blahnik, agulhas mais altas
dois centímetros do que o habitual, abusa da sorte. As pedras gigantes do chão da entrada da casa, apesar de polidas pelo tempo,
não estão niveladas e é fácil tropeçarmos quando nos pés usamos os Himalaias
transformados em sapatos. No entanto, a minha irmã está convencida de que quem
se deve vergar, obedecer e moldar os caprichos, é obrigatoriamente o outro. Não admite a mínima adaptação ao que a rodeia, mesmo que o contrário signifique
o seu equilíbrio.
Chegamos ao Douro no fim da tarde de ontem.
A maninha pousou a urbanidade na pedra, pronta a tentar manter o piso
seguro debaixo dos tacões. É tarefa que lhe exige concentração e lhe entope todos os sensores. Foi por
causa dos sensores apontados para os desníveis do solo que
a rapariga desprevenida sofreu o ataque.
Há, aqui, livre e feroz, uma espécie de galo bonsai - o Armindo -,um frango com
peneiras, uma coisa chamada garnizé três vezes mais pequeno do que um
galo normal, mas seguramente mais agressivo do que toda a capoeira. Odeia tudo
e todos e, sobranceiro e orgulhoso, desata a correr atrás de tudo o que se move
pronto a bicar e a esfrangalhar os calcanhares ao maior dos invasores.
A Kelly bag da minha irmã, transformada em arma assassina, serviu de arremesso,
mas há que reconhecer que foi um prazer desmedido ver uma das mais poderosas
mulheres que conheço desgrenhada e esgaivotada, esbugalhada e esgrouviada, a
tentar afugentar o psicopata.
Já protegidas de ataques furibundos, depois do copo com água da praxe, vimos
o meu irmão chegar empapado em suor.
O homem alagado abraçou-nos.
A minha irmã empalideceu quando o abraço se desfez e a blusa de seda
acusou a mancha da empatia a desenhar um mapa acinzentado e húmido. O rasto
de Gucci que a segue foi literalmente abafado pelo cheiro a terra
molhada e a erva fresca que o rapaz parece usar agora.
Pálida, com a tensão arterial em queda abrupta, rígida e já sem qualquer tipo
de fleuma, incluindo a britânica, a minha irmã enerva-se:
- Vamos embora amanhã! Tu vens connosco. Não penses que te deixo sozinho
com uma galinha psicótica e a suar para cima das pessoas.
E em crescendo, até ao esganiçar e estoirar cristais:
- Não contradigas uma mulher paciente,
calma, elegante, magra, alta, inteligente e culta. A fúria de mulheres assim é
devastadora.
O Porto é já ali, mas com a minha irmã naquele estado à
frente das tropas, ainda acabamos, os três, no sul do Líbano a perguntar onde
raio se meteu a torre dos Clérigos.
Que os deuses nos protejam.