O meu apartamento estava voltado para o mar.
A porta do meu apartamento tinha um olho de vidro através do qual eu encontrava ou desencontrava o mundo e permitia ou impedia a entrada dos outros.
Da varanda do meu apartamento voltado para o mar via, de vez em quando, uma mulher de calças de fato de treino e t-shirt azul-turquesa a passear um doberman. Quando o cão se afastava, a mulher chamava-o. Não gostava do nome do cão e penso que o cão também não gostava do nome que tinha.
Às vezes descia, atravessava a Avenida e sentava-me no banco de pedra do passeio público voltado para o mar.
Um dia uma peixeira de Matosinhos sentou-se ao meu lado, no banco voltado para o mar. Ensinou-me a amanhar uma pescada. Não queria saber, mas mesmo assim ouvi atenta. É difícil amanhar uma pescada quando sabemos que não voltaremos a ver a peixeira de Matosinhos sentada ao nosso lado, que nos vemos a ver.
Às vezes descia de manhã para comprar pão à padaria antiga, pintada de amarelo pálido a cheirar a trigo. O senhor da padaria conhecia-me. Gostava de mim. Perguntava-me pelo meu pai e pela saúde da minha avó. Gostava do pão que ele fabricava e vendia. Ao sair, na rua, desembrulhava e mordia o pequenino pão que ele me oferecia sempre, enquanto passava pelas mulheres que vendiam fruta no mercado da Foz e que trabalhavam palavrões ceifados por sorrisos.
Às vezes voltava para o meu apartamento onde escondia os livros que não queria emprestar e onde, às vezes, não me sentia sozinha, privada dos outros.
Longe do meu apartamento, havia uma senhora que escrevia romances em folhas A4, sem lhes deixar margens, sem lhes deixar cabeçalho ou rodapé, com uma letra negra, densa e inclinada, quase sem espaço entre palavras. As folhas ficavam preenchidas por completo - às vezes penso que não há margem nem para os erros. Os romances que a senhora escrevia são os que escondo no meu apartamento, porque não os quero emprestar. São meus, quase privados.
Longe do meu apartamento, tenho um amigo de quem tenho saudades. É professor numa Universidade antiga e crítico literário. A ele chegam aqueles que escrevem em folhas A4 romances cerrados. Contribui para a transformação do ali escrito, até ali privado, em capas espalhadas pelas montras das livrarias que esperam que se lhes entregue o génio.
Depois tenho um apartamento voltado para mim, onde me vejo a ser vista.
Tem uma porta no meu apartamento voltado para mim, mas é através de mim que deixo ou impeço que os outros me vejam.
Há uma senhora que escreve romances no apartamento voltado para mim, que me sorri sempre e me afasta o cabelo quando me sento a ouvir, na sala velha com cadeiras de mogno e uma árvore torcida e negra no quintal. Gosto de ficar com ela só para mim. Tê-la em privado.
Tenho também, neste apartamento, um amigo que lê romances cerrados no que deixo que me olhe, aqui, nos cafés da minha sala, onde a rua, a outra rua que não atravesso quando saio e desço para me sentar ao lado da peixeira de Matosinhos, vem alterada sem nexo ou finalidade funda.
Vejo-me a olhar e penso que é tudo tão privada em mim, como os cafés da minha sala ou os romances que eu comprei e que eu escondo, porque são meus e não gosto de emprestar livros a público nenhum.
A mulher de calças de fato de treino e t-shirt azul-turquesa que passeia o cão no passeio público, olha para mim, de vez em quando. Depois é esbatida pelos outros. Vai desaparecer um dia. Vai deixar de passear o cão pela minha sala. O cão que sabe amanhar pescadas em Matosinhos, que lê romances em folhas cerrados, que os revê depois no anfiteatro e que tem um nome de que eu não gosto.
Os meus apartamentos são só meus, erguidos nas bermas das minhas avenidas.