- Chegaram flores para a menina.
Depois entrou um bando de perfumes atados por um cordel. Uma pequena nuvem cor de salmão e branca e pintalgada de rosas.
Preso às flores um minúsculo cartão que abri com o sorriso tonto das tontas que suspiram.
ao mossar?
Desabam os museus, as obras de arte, toda a literatura do universo, as telas e as estátuas milenares, papiros e gravuras, torres de marfim e de Babel e mais que não se diz porque ruiu perante o mais pessoano dos bilhetes que de ridículo tem o que é perfeito.
Agora o meu pequeno universo conta com o encanto de uma palavra destas.
A Gaffe jardineira
15/03/2015
Hoje a Gaffe aprendeu que a cor das fabulosas hortênsias que crescem desmesuradas nas alamedas deste recanto do Minho e que este homem trata como se de gente se tratasse, depende da composição química do solo. Ensina-a com um desvelo preocupado e preocupante, como se da sua aprendizagem dependesse a conservação da espécie, que podemos modificar a coloração das flores aduando-as com uma mistura diferente da do chão de origem, alterando desta forma o ph do solo.
A Gaffe percebe então que as que rebentam doidas, descontroladas e obsessivas perto da entrada, foram adubadas com o estrume das mulheres do passado deste rapagão. São todas cor-de-rosa.
A Gaffe e ele
16/03/2015
No seu fim-de-semana minhoto, a Gaffe decidiu elaborar uma lista de prós e contra relacionado com o homem que a arrebatou.
Não é que este tipo de rol tenha grande importância, mas acaba por ser útil quando é com ele que limpamos as lágrimas e assoamos a tristeza quando a segunda coluna desaba soterrando a do prós.
É aconselhável tentar preencher primeiro a menos favorável. Ajuda imenso a evitarmos oscilar perante um defeito porque somos sempre encadeadas pelos traços que riscamos benevolentes na coluna dos brilhos.
A Gaffe de Montblanc mental, conseguiu riscar no seu moleskine interior pelo menos três descalabros de difícil perdão e problemática correcção.
A saber:
1 - O homem toma duche com as portas escancaradas. Uma rapariga desprevenida enfia as calças de pijama do rapaz, que acabam por lhe servir também de macacão tapando-lhe as maminhas, e sonolenta apanha com a nudez encharcada do matulão descontraído. Mesmo enevoado é perfeitamente visível o D. Sebastião.
Já não haver nada para se esconder não é desculpa! Existe imensa coisa a ser retirada da nossa vista num corpanzil daqueles! Há que pensar na nossa linha. Se os olhos também comem, esta rapariga corre o risco de se tornar obesa.
2 - Ao fim do dia, adormece com a cabeça pousada no nosso colo enquanto dissertamos acerca do existencialismo Sartriano. Estamos nós empolgadas a tentar enfiar Simone de Beauvoir no meio do sofá e ouvimos as placas tectónicas a ranger e a roncar prontas a parir vulcões e sismos!
Não adianta, quando lhe perguntamos se está a dormir, abrir um olho e informar que estava a ouvir por dentro. Não convence. O fio de baba desenhado na barba atraiçoa a defesa e não! não estávamos a falar de Woody Allen.
3 - Faz uma cara de espanto e de surpresa como se lhe fosse apresentado o Adamastor quando lhe é sugerida uma leve e breve depilação localizada como é uso nos rapazes mais urbanos e, como se tivesse ouvido uma tolice de criança tonta, sorri e encosta-nos a cabeça ao seu peito nu que cheira a madeira e nos faz cócegas no nariz.
Uma rapariga tem de estar atenta a estes pormenores de importância capital caso o romance tenha um fim trágico ou a ópera seja apenas bufa.
A Gaffe preocupada
18/03/2015
A idade do rapagão não é suficiente para despertar a gerontofobia vigente, mas permite os alfinetes da praxe que trazem na ponta enferrujada o sacramental conceito do quarentão mulherengo e sacaninha, incapaz de manter uma relação emocional e o aviso que pica de perigo iminente.
No entanto, se tivesse de atribuir um determinado papel a este homem, escolheria Heathcliff, sem os demónios e os traumas que Brontë lhe entregou e Heathcliff pode ser sombrio e solitário, mas não é de todo um mulherengo sacana.
O homem dos vendavais é uma das figuras que mais me fascina em toda a Literatura e se o aproximo do rapagão é porque a imagem, sobretudo física, que desta figura criei se lhe reflecte no corpo.
O rapagão é grande. É um homem muito grande. As mãos conseguem esconder-me por completo a cara. Fico com o rosto coberto por noites e quando me encosto ao peito dele sinto que desapareço, porque o espaço é grande como o Yorkshire. Não é hirsuto, mas está muito longe de ser um boneco de plástico e tem desenhada uma espinha negra e dócil de pêlos nos músculos da barriga que podem ser contados.
É desleixado. Usa calças de pijama de flanela às riscas apertadas na cinta por um cordel de algodão. Ficam-lhe curtas e os tornozelos nus parecem aumentar ainda mais os pés que são tão grandes. Dorme de t-shirt e quando acorda, às seis da manhã todos os dias, cheira a madeira e a pão quente. Traz vestido este cheiro o dia todo.
Não fala muito. Trabalha imenso e não sei, pobre de mim, o que faz ele por muito que queira conhecer o que ele faz. Chega esgotado e sujo. Enrola no dedo um caracol do meu cabelo e não diz nada. Sorri, como se eu fosse um pássaro que veio sem saber de encontro às suas grades. Faz-me sentir idiota nesta altura. Abraça-me depois. Depois cozinha. Comemos batatas com bacalhau, couves e cenouras cozidas, encharcadas em azeite e temperadas com alho e vinagre caseiro. Gosta muito. Come maças à sobremesa e faz estalar a casca com os dentes.
Faz contas e escrevinha nos papéis sentado a uma secretária de madeira velha e, já noite feia, deita a cabeça no meu colo e adormece.
Chama-me chamazinha e o meu nome é esse.
Às vezes sento-me perto da janela quando estou sozinha e tenho muito medo de só estar ali à espera que ele chegue.
Depois pego na Vogue e entretenho-me.
A Gaffe bucólica
22/03/2015
A Gaffe acaba de acordar com o som dos passarinhos e um ramo colorido de frésias pousadas na almofada em vez do rapagão.
Ainda de olhos mal abertos consegue lamentar não ter à mão uma vuvuzela. A passarada aprendia de vez a não incomodar o sono de uma rapariga cosmopolita. Às vezes é preciso tomar medidas mais robustas, normalmente nada bucólicas, para que se perceba que nem sempre os trinados são a forma mais romântica de se amanhecer. Há buzinas e gaitas que fazem imensa falta.
As frésias soltam um perfume que enjoa a Gaffe que sempre as aliou a cemitérios. Não foi propriamente uma escolha muito viva, mas o que conta é a intenção.
A Gaffe, perante a inevitabilidade campestre de um amanhecer trinado e enjoativo – e porque quando uma manhã começa aos gritos de avezinhas, o resto é o que acontece quando passamos por baixo da árvore onde a orquestra se reune - decide começar a preparar-se. Vai almoçar a um restaurante regional, perdido onde o diabo largou as botas e se recusa a ir buscá-las, onde servem um fenomenal bacalhau com batatas a murro.
A Gaffe pasma perante a voracidade com que o rapagão gosta de bacalhau.
Entre um episódio de Uma Casa na Pradaria e um bacalhoeiro ao largo da Terra Nova, a Gaffe nunca sabe se deve usar o seu Galliano inspirado nas tribos dos Apaches ou se um dos caixotes de papelão que a Dulce Pontes veste.
Há dilemas que nem os mais idílicos cenários conseguem debelar.