A minha irmã apodera-se dos espaços. Move-se de
igual forma em todo o lado. A mesma indiferença, o mesmo enfado, a mesma
incapacidade de reconhecer as diversas pulsações de cada cidade que rasga e
domina como se as tivesse moldado ao batimento do seu próprio coração.
Espero-a em West Village, entre a 7ª e a 8ª
Avenida, no café que reproduz do modo mais fiel um canto e um outro canto e um
recanto de Paris e onde acabei por pertencer, como era inevitável. Sei que virá
igual em todo o lado. Afastará a madeixa do cabelo que tomba indomado,
amansando o olhar, quando me olhar, e avançará para mim como avança nas ruas de
Paris, Londres, de Madrid ou Sidney ou mesmo nas ruelas órfãs de nome que
rompem e se rasgam sobre o Douro. Todas as artérias partem dela. Nenhuma é
exterior ao seu enfado, misto de cansaço e de desprezo como se tudo lhe
pertencesse há muito tempo, que tudo é já dela desde sempre. Ignora o latejar
do mundo, porque é seu. Igual em toda a parte.
Não sou assim.
Tenho nas ruas que atravesso agora o medo de tombar, de me perder em mim por
entre a gente. Deram-me um estranho aparelho que se prende à cabeça e que me
tapa os ouvidos com almofadas de som, redondas, grandes e que é normal usar
aqui e frequente. Controlo-o através de roldanas minúsculas detectáveis no
hemisfério esquerdo. Fazem lembrar o Inverno no Alaska e os protectores de frio
para as orelhas. Dentro, tenho Bach, Mozart e Brahms e muitas vezes avança
Rachmaninov no meio de mim, separando-me das ruas. A ausência de fios impede
que me arranquem e me roubem de ímpeto o som que me protege e que me faz
ausente. Dentro dele, suporto as Avenidas, encaixadas no avançar das sinfonias.
O meu apartamento é exíguo. Tem, no exterior, umas escadas de incêndio com um pequeno espaço acessível através de uma janela. Sento-me ali nas tardes e nas noites que são manhãs eternas e mordo a maçã que me deu a velha ensandecida em Times Square, na 7ª Avenida que intersecta a Broadway. Vejo em frente um dos rapazes que lavam as janelas pendurados e seguros por cordas (são tantos e tantas vidas e vidros encharcados!). Dentro das multidões que atravesso, estes insectos musculados de capacete e camisas ao xadrez, presos por fios a baloiçar no perigo, são os mais belos risos e riscos que eu apanho nas teias do meu inglês que é um sem-abrigo e que descobre que o meu francês, aqui, é aristocrata.
Sinto Saudade da nobre velhice das cidades.
NY é um jovem estilhaço. Um vidro que explodiu e que pulverizado cintila, cega,
apunhala, desmesuradamente esboroado, um paradoxo absurdo a esbracejar na lama
e na poesia. Não tenho a Renascença a esmagar as pedras com os olhos e falta-me
a lonjura gelada das catedrais do medo, inquisidoras negras de veludo roxo e
ouro a derrubar de peso, a rastejar fogueiras. Falta-me a velhice das cidades.
Falta-me o Tempo.
Se existisse a noite em NY, seria a noite do mais desgostoso dos sozinhos. Mas
a manhã é aberta como a janela de acesso à escada de incêndio. Sento-me nas
manhãs e vejo insectos pendurados pelos fios, com patas de camurça e água e
perigo. Nas manhãs me deito e nunca durmo e nunca sonho porque no céu há
insectos e no chão de NY há excrementos. Há obesos que trituram embrulhos com
nódoas que os tornam transparentes e deixam ver os obscenos conteúdos
gordurosos. Há mulheres esquálidas e loucas que empurram a vida em carros de
alumínio com a ferocidade que está no medo de perder o que não existe. Há a
densidade absurda do ruído que serve de humidade, o congestionamento das almas
desmanchadas. Há cadáveres de beijos em Central Park e corpos que se estendem à
procura deles para os velar ou incendiar com eles as luzes dos barcos a passar
sob Bow Bridge. Há o meu corpo, depois, a atravessar desejos dos que erguem
outras pontes sobre o lume de fósforos a arder dentro dos dedos.
A sedução é inútil. NY entrega em cada vão de escada, em cada umbral, em cada
pedaço da rua mais estreita, em cada olhar ou gesto, em cada riso aberto ou por
fazer e só adivinhado, em cada pedra, fonte, pedaço de corrida em Central Park,
em cada elevador, em cada arranha o céu pousado a ondular na relva, o corpo que
quisermos. Basta sorrir. Basta que o olhar não se desvie. A sedução não é feita
de inteligência. Não tem os labirintos que sempre me atraíram. Seduzir, aqui,
não faz sentido, porque só há um sentido a ter em conta. O que se encontra a
cada passo dado, o que aponta o nosso corpo desejado, o que nos chega disparado
à toa. Sentir à toa.
Não sou desta cidade. Não a ignoro. Se dela fosse, não tinha a consciência do
espaço que me dá, por entre os outros. Não havia a angústia de a ver em mim, a
empurrar para dentro as luzes e os ruídos que se cravam nos tijolos de ferrugem
e nas almas de metal e de néon. Não sentia, externo a mim, este pulsante
vórtice, o turbilhão de rostos, as ondas dos gestos recortados mudos, em
orquestra no meu cérebro murado por andamentos escritos por rotas de colcheias.
Não esperava a minha irmã no Tartine - et voilà
Paris! - e não me deslumbrava por não entender a despaixão,
o desenfadado andar desta mulher que afasta a madeixa do cabelo, porque não
quer o olhar mais manso e que desconhece o nome da alma das cidades, mas que as
ilumina a cada espaço com a labareda insidiosa de um isqueiro.
A Gaffe em Times Square
25/08/2014
Jörg Schmeisser |
Times Square é um bicho com tentáculos destemidos pronto a lancetar o mais incauto. O seu bafo cheira a sexo e ao indefinido aroma do perigoso. As incontáveis cores de Times Square são aquelas que ostentam os cartazes porno, os olhos dos drogados encardidos e os anéis de fancaria traficada. Há mulheres baças e homens desbotados contra a carnificina colorida do tempo que se afasta da noção do espaço que se encurta, que se afunila, que vai desembocar nas goelas de néon e vidro, de apelo e de asfixia. Morre-se em Times Square, como num rio de ruído e não há mão nenhuma que nos atire a esperança enquanto o nosso corpo vai caindo.
Morre-se em Times Square de multidão.
Em Boerum Hill Inn, na esquina de Bergen com
a Heyt, sobre o balcão que brilha coberto por um espelho, existe o jazz
ouvido pelos homens de Manhattan.
Jazz arrastado e engolido num sorvo pelos solitários das
secretarias de Midtown com apartamentos luxuosos com vista para a ausência,
rasgada janela do desassossego.
São homens espalhados pelo chão. De pé, como se estivessem deitados. Com olhos
que fervem no escuro e arrepio nos gestos que são tiques. A flor da pele
nervosa, à flor da pele e a amargura retesada da impaciência na solidão de
gravata solta e dedos presos no turbilhão do jazz.
Ficam quase sempre sozinhos.
Mas é em Boerum Hill Inn onde se ouve jazz que eu vejo duas mãos
entrelaçadas. As do homem envolvem as da rapariga como se fosse pão e houvesse
fome, como se não houvesse mais corpo a recolher na concha do sossego.
Deixam-se mesclar como nada houvesse ali a não ser jazz.
O homem usa uma cadeira de rodas. A rapariga encosta a perna à inutilidade
magra do joelho do amante. É poderosamente nova, quase adolescente, e contrasta
com a máscula dureza madura do que lhe afoga os dedos. Olham-se como se um
fosse um cão e o outro o dono.
Em Boerum Hill Inn, na esquina de Bergen com a Heyt, eu desejei ser um deles, um qualquer, porque o lugar a que chamo a casa está distante.