09/01/2014
Daniel Merriam |
1.º Andamento
No fim da alameda, ela espera.A guardiã do eco, dos grãos de pó, das janelas fechadas, das cortinas corridas, condenadas. Aquela que ficou a envelhecer. A que me chamava do fim do corredor sempre que havia espaço para os meus olhos nos reinos das senhoras. Eu chego agora e fico a olhar para dentro com as mãos pousadas nas crostas do portão. No fim da alameda, a que ficou à espera, no exacto lugar em que a minha avó a deixou, a escolhida para zelar por tudo, à minha espera.
Estava sempre a bordar! Lembras-te, avó?
Uma grande tela branca que ela ia picando e colorindo. Espetava-lhe ramos recurvos, folhas retorcidas e flores emaranhadas. Mal acabava uma rosa, vermelha como uma chaga de Cristo, cravava-lhe junto uma outra qualquer espécie botânica, prolongando o sofrimento do pano. Não ia acabar nunca aquela dor barroca! É certo que de raízes pouco ou nada existia no seu jardim de linhas. Talvez um caule mais tortuoso, um ramo mais retorcido. Os dedos da mulher acabaram substituindo os subterrâneos apêndices, afinal, era através deles que se nutria a flora descoordenada que espalhava no regaço.
Debruçava-se, encostando os olhos à agulha e injectava um fio de sangue para plantar mais rosas e um outro sangue afluía ao dedo picado.
Cinderela a lamber a polpa do dedo, maçã de outra história, ou uma das Parcas, a que corta fios?
A casa, avó, adormeceu nesse bordado.
2.º Andamento
Não chores quando eu me aproximar. És tão pequena e tudo é já tão grande. Eu entro devagar e é tudo tão depressa. Deixa-me passar e não me fales. Sorrio uma vez só e olho para ti. Gosto de ti. Sempre gostei. Tinhas aventais repletos de aromas que eu já não conheço. Trazias flores no teu regaço, madressilvas, malmequeres e lírios. Flores a rodearem a cinta, a treparem pelas abas do avental. Cheiravas a lavado, fazias leite-creme e vinhas comigo, a arrastar os pés, quando eu tinha medo do escuro do meu quarto.
Defendeste a casa a tiro de espingarda? Bordaste-lhe o jardim? Correste com aqueles que cortaram as memórias e que deixaram secar as sardinheiras nos canteiros do jardim? Fechaste tudo, até o pó da tarde em que te deixaram só, de modo a que eu encontre o mesmo pó?
- Lembraste de mim?
- Não haveria eu de lembrar?! A minha menina pequenina! A menina dos olhos de prata.
Agora que pisei a minha sala já podes descansar.
3.º Andamento
Não há sons. Já não existem os teus sons, avó. Mesmo o ranger do soalho, ainda encerado de quinze em quinze dias, parece diluído. Pesa de perfume o ar que não respiro agora, mas que me entra baço nas narinas e há escuro desperto nas rajadas de luz que entram pelas janelas. É Primavera. Não há vento, mas sinto as folhas esbaforidas a rodopiar. Estou cá dentro e sinto frio, como se tivessem aberto as portas todas e as correntes do ar enfurecidas viessem galopar o meu espaço. Onde fiquei? É mesmo aqui que existo?
Talvez agora entre na luz filtrada azul e madrepérola.
Talvez suba as escadas.
Talvez consiga abrir gavetas e tocar no tempo que parado olha.
Talvez releia as tuas cartas, avó, que já sei de cor e pare por instantes na frase em que se ouve:
- Esteja onde estiver, hei-de aqui voltar. Mesmo se morrer hei-de ficar aqui. Assim, tu vens e habitas-me.
Talvez consiga então descerrar os olhos, cegar e emudecer todos os móveis e pousar os livros.
Talvez desça depois e devagar agarre a minha chave. Aquela que tu deste à senhora do bordado.
Talvez me deite na terra já despida e neste chão cave uma cova com os lábios, língua e dentes, como quem beija amantes ou estios.
Talvez deixe tombar lá dentro a minha vida.
Talvez lave com terra, depois, as minhas mãos, até a minha pele ficar de lama. Só depois.
Talvez mergulhe a dor de dentro dos meus olhos, como um lanho, na água da cisterna até acordar o minúsculo coração que respira um barco, o Douro e o vento Norte.
Talvez consiga isto e muito mais.
Mas não consigo, avó, deixar de ter saudades.