Peter Turnlay |
A enfermeira com olheiras permanentes e cantos da boca descaídos, antipática, rabugenta, impaciente e severa, diz-me, enquanto expira o fumo do cigarro mal fumado, que já tem quinze horas seguidas e duas maçãs de trabalho no lombo.
Veio só respirar um bocado, informa-me à laia de desculpa, como se aquele intervalo lhe pesasse na consciência e a tornasse culpada de negligência.
Das varandas dos apartamentos, do outro lado das ruas,
longe, tão longe que adoece, batem palmas.
A enfermeira olha para mim. No meio de uma baforada, os seus
olhos piscos de lágrimas. Encolhe os ombros.
- Somos heróis o carago. Borro-me de medo. Ando aqui toda apertadinha e, para ser sincera, só me apetece desandar daqui para fora. Cagões, é o que somos todos. Entende-se porque se esgota o papel higiénico.
O barulho das palmas afugenta o medo. O deles, que o nosso
está aqui e não arreda um palmo.
Dizem que batem palmas aos heróis.
Dizem que nos batem palmas.
Falam-nos de guerra.
As metáforas bélicas ficam sempre bem nas intervenções institucionais em quarentena patética e nas exortações do facebook.
Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!
Alguém me disse um dia que um herói é o cagaço com armas nas mãos. A definição poderia ser forçadamente agustiniana, não fosse o pretenso vernáculo a macular o meio literário. Não fosse a inexistência das armas. Não fosse a pandemia do pânico que subverte e decompõe e desmuda e desordena a indiferença que cresce e que se instala ínvia nos habitáculos do tempo em que a paz é tida como certa.
Um país que precisa de heróis para sobreviver, talvez não mereça ser salvo.
Das varandas dos apartamentos, do outro lado das ruas, longe, tão longe que adoece, batem palmas. É provável que no som dilatado de todas as palmas juntas se não descubra ainda o propósito da vida, que não se encontre a essencial pergunta e a imprescindível resposta.
A coroação do tão propagandeado estilo de vida ocidental - que se tenta expandir a Oriente - como inexorável modelo global com capacidade para se impor ao periclitante equilíbrio civilizacional, idolatrando a trepidação que ignora o sentir da terra, e a pesadíssima coacção que é exercida sobre aqueles que não conseguem encontrar a fuga dos paradigmas de consumo, de exigências mundanas, de êxitos financeiros e de todos os soberanos lobbies que esmagam e calcificam a alma, são colocados em causa por medo maior, mais evidente e lógico, ou pelo mais comezinho e patético que seja possível sentir, com origem num dos mais contagiosos vírus existentes no planeta.
A questão a formular deixa de ser a tradicional e esconsa
viela sem retorno ou saída. Já não é possível perguntar quem somos, ou o que
queremos, ou para onde vamos. Há que encontrar a resposta a uma das mais
perturbadoras das perguntas, que é também aquela a que é possível dar final:
De que fugimos nós?
De que tentamos escapar quando somos confrontados com a nossa intrínseca debilidade, com a nossa implacável fragilidade, com a nossa humilhante condição de caça miúda perante um predador que de tão ínfimo nem sequer se vê?
De que fugimos quando em desespero desejamos tudo?
Quando soubermos responder, talvez então não se fale de heróis, por apenas haver gente.