2.3.22

A Gaffe fúnebre


Não gosto da Morte vista como um anjo enorme, perfeito, de asas luminosas, sorriso plácido e olhos de lâminas.
Gosto de a ver como velha encarquilhada e negra, com mãos que são de terra e olhos de punhal manchado. Gosto da Morte romântica, frustrada, derrotada, derreada, escura e tenebrosa.

A Morte quando nos apanha não nos agarra tudo. A tragédia da Morte é esta. O derrotar da Morte é este. O seu segredo mais íntimo. Vem e o que toma não está completo. Prende pedaços que restaram. Leva na boca as fracções de nós que resistiram àquilo que em nós foi decepado..

Morremos antes de morrer. Devagarinho.
Mentimos à Morte. Somos cortados enquanto o tempo passa.
Morremos sem coração, porque o coração que tínhamos quebrou pelo caminho ou foi entregue. Morremos sem olhos ou sem mãos, porque cegamos ou deixamos de mover os dedos quando nas casas que habitamos já se esvaiu a luz ou se esbateu a pele dos que tocávamos com olhos e com dedos, madrugada fora. Morremos já sem braços, já sem pernas, porque deixou de haver caminho para abraçar alguém. Morremos sem boca, por não haver palavras. Sem palavras por não haver quem ouça. Sem cama e mesa e roupa lavada, porque não dormimos dentro de ninguém, já não comemos o pão feito de desatadas emoções e estamos sempre nus até morrer.

Alguns fecham os olhos, nos outros há batalhas, mas a Morte recolhe sempre o mesmo. Já vamos quase mortos.

Morremos a cada passo que passa sobre os que por nós andaram e há mortos que nos fazem morrer mais do que a Morte.

Quando a Morte velha e vestida de negro, de mãos de terra seca e olhos de punhal, espreita nas esquinas das ruas que vivemos, já temos vindo a morrer por ali fora, rolado nos granitos dos passeios. Já somos quebradas almas, decepados corpos e arrastamos mortos membros, apodrecidos restos, esfarrapados de nós.

Gosto da Morte, velha e negra, a fazer puzzles.