14.4.22

A Gaffe de "Notre Drame"

15/04/2019


O lema de Paris - Fluctuat nec mergitur - sobrepõe-se ao grito la flèche est tombée que arrepia e torna a imagem da queda do archote numa das mais significativas da tragédia. Uma imagem icónica. Uma tocha cai com a dignidade devastadora esperada na queda dos signos.

O objecto Notre-Dame é uma construção e reconstrução dos homens.

 2/3 do telhado desapareceram. Pertenciam ao século XIX.

O arco de pedra sob o telhado não sofreu grandes danos.

As torres e a fachada da Catedral estão a salvo, embora a estrutura necessite de avaliação cuidada.

A esmagadora maioria dos vitrais resistiu. Estão ilesos. Apenas uma das rosáceas se estilhaçou.

A flecha da Catedral datava do século XIX. Não provinha do século XIII. As suas dezasseis estátuas tinham sido retiradas dias antes.

As relíquias foram salvas.

O orgão da Catedral não sofreu danos. 

O Grupe Artemis vai doar 100 milhões de euros para a reconstrução.

O Grupo Kering vai doar 100 milhões de euros para a recosntrução.  

O Grupo LVMH vai doar 200 milhões de euros para a reconstrução. 

 O signo Notre-Dame há séculos que se havia tornado arquétipo e a raiz da Árvore é de pedra, em cruz como as catedrais, e mantém nas garras a memória colectiva, tornando-a única, mas transmissível, pertença absoluta de cada um que passa, subjectiva, como é de seu paradoxal destino.

Talvez por isso os sinos das mais icásticas Igrejas de Paris tenham tocado juntos a rebate, carpindo o incêndio, avisando os homens como não o faziam há já mais de cem anos. Pranteando a tragédia do signo ameaçado, prevenindo os homens da irremediável fugacidade da existência que acolhe o esquecimento e a indiferença como motor civilizacional, como objecto do progresso, como exclusiva ferramenta do real.

Nada é tão vazio, tão terrivelmente oco, tão desoladoramente triste, como ilustrar a ardência de Notre-Dame com o quasimodinho da Disney agarrado as lágrimas com que banha as torres. Nada é tão revelador da distância que separa o homem do signo, da desvinculação do homem ao símbolo.

O nosso drama é que choramos demasiadas vezes através da Disney.


A primeira vez que entrei em Notre-Dame foi pela mão da minha mãe.
A hora era parda e chuvosa. A Catedral respirava lenta através das sombras das pedras e dos ruídos quase impercetíveis das madeiras. Não me lembro se havia mais alguém. Notre Dame sempre me deixou sem gente à volta. Sempre me deixou entregue a mim, sozinha, perante a consciência aguda da minha própria alma.

Falou-me devagarinho de Maurice de Sully, de Raymond du Temple, de Jean-Baptiste-Antoine Lassus e de Eugène Viollet-le-Duc, o princípio e o fim. Falou-me de Alexandre III e de Manifestis Probatum que ergueu Portugal. Falou-me do rei santo, Luís IX, e da sua Saint-Chapelle que resguarda a coroa divina.
Falou-me de Henri de Beaufort que impõe aos franceses um rei de dez anos, seu sobrinho-neto e sexto Henrique em Inglaterra.
Falou-me dos veludos negros de Maria Stuart arrastados pela Catedral em nome de Francisco II, de Marguerite de Valois, de Eugenie de Montijo, de Isabel de França que se ajoelharam perante Deus e perante os reis e imperadores seus maridos.
Falou-me de Napoleão e fez-me ver depois, mais tarde, Le Sacre de Napoléon de Jacques-Louis David e a humilhação de Pio VII.
Falou-me de Victor Hugo, mas não me falou de Quasimodo. Deixou que o lesse.
Falou-me de Leclerc e de De Gaulle. Falou-me de Hitler.

Falou de Liberdade.

Todas as vezes que voltávamos, a minha mãe lia-me Notre-Dame e fez-me perceber de forma lenta que a Catedral continha mais do que a majestade dos labirintos de luz e de pedra - de luz na pedra -, que guardava mais do que o balançar do tempo nas cordas da eternidade breve entregue ao homem, que urdia mais do que a transcendência humana.
Notre Dame, a Nossa Mãe, em paradoxo, aproximava-se em simultâneo da indizível fragilidade da minha mãe e da sua incomensurável capacidade de nos dar guarida, de nos fazer sentir parte do tempo que passa e do tempo que vem, de nos fazer sentir, como se olhássemos o espelho, sendo ao mesmo tempo o próprio espelho.
Freud e Jung falaram dos arquétipos. Elementos quase divinos que latejam nos escombros de todos os homens. Contaram-nos da Mãe, da Árvore, do Lenho, da Cruz que é a Árvore despida, crua, só, onde é cravado o Homem que serve como base a toda a Catedral. Cristã ou não cristã. Mater. Materna. 

Suponho que Notre-Dame é representação de um arquétipo.
A palpável Imagem, a percetível Ideia, a tangível identidade humana.
Não sei.
Talvez seja esta minha humilhante ignorância a origem da náusea que me assola quando vejo Notre-Dame abraçada por um quasimodo de brincar que chora a queda de um desenho da Disney.
Talvez seja esta minha aviltante insciência que me indigna quando me deparo a cada passo com a raiva das gentes que salivam contra os mecenas – e é de mecenato que se trata, sobretudo quando se prescinde dos benefícios fiscais que origina -, que decidiram entregar o que é só deles - só deles, sem que ninguém pergunte como -, à tentativa de reerguer a prova da existência de uma identidade humana, depois de, por exemplo, terem sido responsáveis pela vida de dois Centros de Investigação, de projecção internacional, em Neurologia e Neurociência, ou pela rede de esgotos de várias cidades do Nordeste de um Brasil miseravelmente esquecido.
Talvez seja a minha doida leviandade que me descontrola quando me convidam para galas solidárias com outros mundos, em que serão sorteados um tablet, um telemóvel e um prémio surpresa, ou um qualquer outro nobelzinho capaz de ilibar consciências dinamitadas.
Talvez seja a minha imbecil arrogância a responsável pela minha surpresa perante a amoralidade, perante a imoralidade, com que as tragédias que os inscritos nas galas declaram dignas de apoio milionário - numa espécie de inovador mecenato cabaz-de-Natal -, se transformam em recursos nepotistas de escroques que são eleitos presidentes de Câmaras e nelas se mantêm ilesos e intocáveis. Talvez seja também por isto, ou talvez não.
Não sei. Sei que foi pela mão da minha mãe que entrei pela primeira vez em Notre-Dame e que foi a minha mãe que me ensinou que a Identidade Humana tem a fragilidade com que se cumpre o eterno.

Já adulta, quando chovia em Paris, abrigava-me nos umbrais dos edifícios e esperava. Mantinha-me quieta e inventava histórias nas nódoas de chuva que alastravam nos passeios.

Às vezes fazia muito frio. Nessas alturas, os momentos de chuva a cair apeteciam-me tanto que me esquecia das horas e era capaz de passar, pasmada, todo o tempo do meu mundo a olhar para o chão que se encharcava. Os sons de Paris acinzentavam-se e as luzes chapinhavam nas poças que alastravam.

Creio que era feliz naqueles pedaços de chuva estrelados. Abraçava-me, apertava o casaco, amarfanhava a camisola junto ao pescoço e tentava manter os pés quentes batendo com eles nas pedras abrigadas.

Lembro-me que tinha umas luvas grossas de pele, forradas, que me aqueciam demasiado as mãos. Nunca gostei muito de luvas, mas aquelas tinham sido dadas pela minha avó e usava-as como quem usa um talismã ou um golpe de saudade. Mantinha as mãos enluvadas próximas do nariz, porque gostava do cheiro do couro misturado com o cheiro da chuva e da memória da minha avó.

Perdi uma no metro. A outra ainda a tenho na gaveta. Vou, de vez em quando, quando não há chuva, procurar o levíssimo rasto de felicidade que, nos umbrais de Notre-Dame, ficava quieta enquanto me abraçava. Havia sossego, como se não precisasse de nada, como se me bastasse, como se estivesse isolada, à parte, e então sentia a Catedral como coisa minha. Só eu e Notre-Dame, nos umbrais molhados.

Fiquei uma tarde, já tarde - tão tarde! - segura pela chuva. Fechei o casaco e calcei as luvas, amarrotei o abraço para não sentir frio e fiquei a ver o sossego pasmado. Veio então de novo aquela morrinha que é ser feliz ou pensar que o somos. Procurei as luvas sem me aperceber que já as tinha calçado e não tinha nada a não ser Notre-Dame à chuva e senti a chuva a cair dentro de mim.

Quando eu voltar a Paris, não tenho a Catedral e sei que a chuva vai cair lá fora.