Cristina Coral |
- Uma diva tem de ser envenenada por aquilo que ama.
Vive-se dentro de uma colecção de clichés, de lugares-comuns, de slogans publicitários, de frases feitas, de fragmentos estropiados de confetis.
É assim que quero.
O dia banal que se baba pelas ruas, quotidianamente repetido, repetidamente adivinhado, cansa-me de tão previsível. Escolho recortar dos dias a surpresa rara ou a mais ínfima promessa de risco ou desafio. O resto esgota-me de tão igual ao resto e mesmo a arquitectura dos dias que desenho é uma arquitectura obediente por preguiça, por desprezo, por incapacidade de reagir ao logicamente óbvio, ao previsivelmente enunciado. Está longe de ser a arquitectura do desconforto, defendida com alma pela minha irmã.
Querem um minarete no jardim da casa no reino dos morcegos de uma aldeia velha em Trás-os-Montes? Que saia um minarete.
Adapto a ideia, reduzo-a a ninharia, contorno e atraiçoo, mas não escapo ou luto, ou entro em guerra num campo de batalha já exaurido. É cansativo. Inútil. Não me excita.
Depois a existência dos outros é previsível. Adivinho gestos, pensamentos, reacções alérgicas, toxinas, brilhos de pedras falsas nos colares, horas nos relógios de platina, valium e imunodepressores, cantigas entre dentes e palavras nos sentidos, danças macabras e concertinas doidas, eróticas pantominas e fantasmas, equilibrismos e redes de cabelo, odores e tintas pretas mascaradas, correrias de gare ou aeroporto, encontros desastrados, corredores, mãos e profetas, notas, sinfonias, dinheiro e miseráveis dentes cariados e a vida inteira nua e choca, podre, fácil, nojenta e asquerosa em todas as esquinas.
Sento-me na esplanada como um cliché com charme. Sei o que fazer para acicatar o lugar-comum que sou e quero ser.
Se olhar duas vezes para o homem da outra mesa, num perfil que ainda não me viu, vou tê-lo num instante a recompor lugares. Arranco-lhe os olhos num momento. Uma vez. Uma outra vez e vai mudar a cadeira de lugar. Uma outra vez e basta. Levantou-se? È previsível. Muda de sítio e fica frente a mim, para banhar os olhos na minha indiferença agora já desperta. Não passa de um pateta. Fácil, como um objecto que se atira e parte só por tédio.
O outro, na mesa ao lado, aquele ainda menino que palra sem parar, sem tino ou viço ou calma, atrapalhando as frases e os ouvintes. Tem um corpo que me agrada e olhos desatentos. É fácil arrancar-lhe o tempo de atenção que quero ter. Basta que no olhar que o prende haja um sorriso breve preso ao anzol dos olhos e aqui o tenho já calado e mudo, a suar de súbito, a sorrir e a olhar, a olhar e a sorrir, sem o pudor dos peixes moribundos que no estertor final apenas movem o leque asfixiado das guelras impotentes.
O homem já maduro a beber sumo de laranja com limão? Aquele de camisa de seda e boca de cetim? Um aceno meu, um subtil aceno com a cabeça, a rede dos olhos presa nos rochedos e ei-lo já de pé, à espera.
O amor?
Eu sinto apenas cheiros. Cheiros espalhados, esmagados, pelas ruas. Agradam-me os cheiros dos corpos que passam distraídos. Aproximo-me das nucas e abro as narinas e sorvo o quente odor dos corpos acabados de banhar.
Farejo.
O meu amor é olfactivo. Não tenho outro a dar.
O resto é náusea ou tédio, desprezo ou indiferença.
O Resto é morte, a entediante morte ou a solidão, que é uma espécie de morte distraída que nos deixa o corpo a apodrecer ainda vivo e foge desgraçada com o coração e a alma a sangrar nos dentes.
La Mort...
Je la chante et, dès lors, miracle des voyelles
Il semble que la Mort est la soeur de l'amour
La Mort qui nous attend, l'amour que l'on appelle
Et si lui ne vient pas, elle viendra toujours
La Mort.
Odeio a sujidade dos dias espalhados pelas ruas. A vida sem-abrigo. A inércia torpe dos que acreditam que no mais ínfimo pormenor está a diferença. Não existe pormenor que não seja um estilhaço perdido na ruína, que lhe pertence, que é parte integrante do desastre, inútil como um facto. Recuso o lamento na vida dos outros com o nojo de me sentir igual às pedras das esquinas, aos lugares descritos medíocres, mas com a pretensão da alma de Zola.
Escolho a inclusão no lugar-comum, no cliché que monto, no fotograma que construo sem pudor, troco o meu cavalo por um reino até que a minha vida inteira se reduza a pontos que cintilam.
Le Baiser du Dragon. Efémero e fatal.