2.4.22

A Gaffe e o "special one"

Ana Julia Gobbi
Há uma altura da noite, no momento em que tenho de desligar as luzes, em que espreito o que disse ou o que me disseram aqui, com a curiosidade de um ratito que se atreve pela calada dos sons a espiar os aromas da cozinha muda e surda.

Nessas alturas, no mecanismo idiota que mantenho sem saber porquê e que me indica o número de pessoas que estão aqui, comigo, encontro sempre uma. Há uma criatura que àquela hora do desligar da noite, vem olhar e ver e ler o que eu deixei planar sem nexo, à toa, sem asas ou vento que prometa uma distância longa.

Gosto tanto de ter essa pessoa aqui, constante, àquela hora. Sou uma menina que agarra um cobertor antigo para encostar ao sono, para dormir tranquila na hora invisível em que não digo nada, porque deixei no chão do dia todas as palavras e não tenho espaço para desgastar mais nada.

Habituei-me a ter essa pessoa àquela hora. Talvez seja alguém que passeia à noite pelas ruas e inveja todas as janelas com incêndios dentro, por saber que a dele está apagada e que descobre de repente que há outro viajante, lá fora, a olhar para o escuro.

É o meu número um, àquela hora da noite em que no negro continuo a invejar as luzes nas janelas.

Sou tonta quando penso que posso deixar de lhe escrever.