A morte da minha tia-avó não teve qualquer impacto visível em mim. Passou pela vida como se viajasse e encontrasse no caminho um banco fresco ou um fio de água, como se parasse então para beber, de mãos em concha, para logo retomar o seu destino sem olhar em redor para me ver.
Irmã mais velha da minha avó, a senhora de nome tão impronunciável que dele foi feito um diminutivo que a diminuía, Mínima, desprezou de modo supremo o país onde viveu durante quase toda a sua vida. Fumava cigarrilhas e falava francês com o casal de velhos empregados que com ela vivia, primeiro num edifício soberbo no centro do Porto, depois, na última década, na quinta duriense, propriedade da irmã que lha cedeu.
Dela tudo o que sei foi-me contado. Fama de leviana e doidivanas, excêntrica, esbanjadora e destravada, nocturna e amante de champagne e poker, jogava ténis e conduzia, doida, um carro nas altas madrugadas da cidade.
Nada existe seguro pelo fio da minha própria memória, a não ser um minúsculo episódio em que a acidez, a aridez e o sarcasmo da velha senhora se atenuou - brevíssimo instante - ao se debruçar, num dos raros momentos em que nela se vislumbrava uma gotícula de ternura, sobre a sobrinha-neta e lhe confidenciar a maior fraqueza: escrevia coisas.
Nada de imortal. Rimas. Apenas rimas.
Secretamente disse à rapariguinha que tinha mesmo ganho um concursinho.
Na telefonia desafiavam os senhores ouvintes a inventar uma quadra de homenagem ao Hotel Lis, de que não sei a história. Ela ganhou, mas nunca quis sair do anonimato.
Hoje - décadas depois! -, descubro-me a recitar a quadra do triunfo. Durante todo o tempo, depois desta confidência tocada por champagne, percebo que nunca esqueci a vencedora incógnita que na telefonia homenageava o Lis:
Lisboa para ser Lisboa
Tem de ter o Lis ao pé.
Sem o Lis, pode ser boa,
Mas Lisboa é que não é.
Agora já sabem quem foi a premiada.