17/04/2016
No Douro nada surpreende, porque todo o tempo foi já visto.
A minha avó espera que tudo esteja pronto e arrepende-se de ter permitido as invasões da Páscoa.
Bendito seja o nome da menina.
A única mulher que nesta manhã sorriu de orgulho, aproxima-se agora tosca e temerosa. Sempre aquele medo a amarfanhar-lhe os gestos.
Que a mesa está posta como a menina pediu.
A minha irmã acena com a cabeça e agradece. Levanta-se depois e deixa uma serpente de perfume a ondular na sala.
- Para a senhora o vinho é o Chianti – volta a prevenir como se a mulher não soubesse das escolhas da dona da casa. - Nós bebemos o que trouxemos. O senhor bebe só água.
Que sim, menina, que já sabe.
Sabes, mulher. Sabes onde guardas a toalha de linho branco e fino que vincaste na véspera e que estendes sobre a mesa como se fosse vela de navio e a mesa o mar ou o corpo adormecido de um amante.
Sabes dos talheres, dos copos, das terrinas, dos pratos, das travessas do serviço mais caro desta casa.
Sabes que limpas as escadarias os castiçais antigos e as pratas polidas todas as quinzenas num ritual que mistura e confunde o tempo já passado até encarcerar o dia em que desfraldas a toalha de linho e anuncias que a mesa está posta como te disseram.
Sabes das janelas que se abrem e das que não se abrem também sabes, que as abriste todas menos a que dá para o jardim que se recusa a ranger e desististe.
Sabes do tempero do cabrito assado e como rodar os ferros até ficar bem tenro e das batatas louras e do arroz nas pingadeiras com ramos de salsa e sabor de outras ervas que eu não sei. Sabes qual é o ferro negro em brasa que vai queimar o açúcar sobre o leite-creme e do arroz-doce, das palmas de azeite e das cavacas, das bolachas feitas com manteiga e dos aromas do que já está pronto.
Sabes do som dos que descem as escadas para se sentar à mesa. Sabes a origem das indestrutíveis nódoas redondas nos degraus que descem.
Sabes de mim à espera. Sabes da furiosa fome que tenho e que és tu que serves (que só a ti eu quero, e a ti apenas, para me matar a fome e tu sorris por isso) e sabes que destoas na harmonia e que decompões a simetria do perfeito que te disseram que existe e te ensinaram a montar domada.
Sabes que é assim, que sempre assim foi e sempre assim será porque tu queres e é essa certeza que tens que une o tempo, que o torna certo, desmesuradamente lógico.
- A mesa está posta como a menina disse.
A minha irmã serpenteia no perfume e não sabe de nada.
Bendito seja o nome de mulher.