12.4.22

A Gaffe no Dia Santo

17/04/2016


É estranho ver como o tempo passa de forma diferente sobre cada espaço.  
A casa nunca envelheceu em demasia. Há rugas cavadas nos muros e nas pedras do chão e a poeira é mais cerrada, mas como se o tempo tivesse dedos mansos e não a crueldade dos dementes que cravam, rasgam e esfacelam a pele das casas como se de barro indefeso fossem as paredes, não há ruína ou treva ou derrocada.  

Noutros lugares o tempo que abre fendas fundas e fecha todas as portas permite apenas que se vislumbre uma luz pálida do interior das almas através das frestas que cavou no corpo das pedras.  
Desses vislumbres soltam-se os costumes mantidos incólumes pelos tempos que aqui digo. Magoam como botas num soalho ou como quem anda de lado para lado de mãos cruzadas nas costas, punhos fechados e mudez absurda.

 No Douro nada surpreende, porque todo o tempo foi já visto.  

 A minha avó espera que tudo esteja pronto e arrepende-se de ter permitido as invasões da Páscoa.

Da janela conseguimos ver os pontos brancos das opas dos que transportam o Senhor que é dado a beijar por estas bandas. A casa foi aberta e permitida a entrada depois de anos a fio de ausência da visita. O cheiro húmido de flores e de folhas maceradas invade as salas e enjoa de tão adocicado. As mulheres rodopiam, decotando sorrisos e sacudindo as saias pretas de domingo e os homens usam os coletes com botões que brilham devagar no aprumo devido ao Dia Santo.  
Tilintam perto as campainhas e no fundo da alameda as opas brancas desfraldam o barulho e as benzeduras. Há gritinhos e saltinhos das moçoilas e os homens procuram a formatura que lhe permite cumprir com honra e tino o ritual já velho.

- Bendito seja o nome do Senhor.

A senhora que por ancestral direito deverá ser a primeira a beijar a cruz, faz com que se apertem os lábios às donzelas, cerrem as bocas das matronas e com que os homens da terra aguardem firmemente a vez de humilharem os pecados.  
O nunca visto em tempo algum, aqui tem lugar em vez da santidade.  
Aproximam a cruz da boca da senhora da casa e todos rilham o ciúme e o despeito, trincando aquele Dia Santo que vai ser falado. Empurrada lentamente a mais nova das netas, a mais ruiva e a mais frágil, é oferecida à cruz para a beijar primeiro.

Bendito seja o nome da menina. 

A única mulher que nesta manhã sorriu de orgulho, aproxima-se agora tosca e temerosa. Sempre aquele medo a amarfanhar-lhe os gestos.

Que a mesa está posta como a menina pediu.

A minha irmã acena com a cabeça e agradece. Levanta-se depois e deixa uma serpente de perfume a ondular na sala.

- Para a senhora o vinho é o Chianti – volta a prevenir como se a mulher não soubesse das escolhas da dona da casa. - Nós bebemos o que trouxemos. O senhor bebe só água.

Que sim, menina, que já sabe.

Sabes, mulher. Sabes onde guardas a toalha de linho branco e fino que vincaste na véspera e que estendes sobre a mesa como se fosse vela de navio e a mesa o mar ou o corpo adormecido de um amante.

Sabes dos talheres, dos copos, das terrinas, dos pratos, das travessas do serviço mais caro desta casa.

Sabes que limpas as escadarias os castiçais antigos e as pratas polidas todas as quinzenas num ritual que mistura e confunde o tempo já passado até encarcerar o dia em que desfraldas a toalha de linho e anuncias que a mesa está posta como te disseram.

Sabes das janelas que se abrem e das que não se abrem também sabes, que as abriste todas menos a que dá para o jardim que se recusa a ranger e desististe.

Sabes do tempero do cabrito assado e como rodar os ferros até ficar bem tenro e das batatas louras e do arroz nas pingadeiras com ramos de salsa e sabor de outras ervas que eu não sei. Sabes qual é o ferro negro em brasa que vai queimar o açúcar sobre o leite-creme e do arroz-doce, das palmas de azeite e das cavacas, das bolachas feitas com manteiga e dos aromas do que já está pronto.

Sabes do som dos que descem as escadas para se sentar à mesa. Sabes a origem das indestrutíveis nódoas redondas nos degraus que descem.

Sabes de mim à espera. Sabes da furiosa fome que tenho e que és tu que serves (que só a ti eu quero, e a ti apenas, para me matar a fome e tu sorris por isso) e sabes que destoas na harmonia e que decompões a simetria do perfeito que te disseram que existe e te ensinaram a montar domada.

Sabes que é assim, que sempre assim foi e sempre assim será porque tu queres e é essa certeza que tens que une o tempo, que o torna certo, desmesuradamente lógico.

- A mesa está posta como a menina disse.

A minha irmã serpenteia no perfume e não sabe de nada.

Bendito seja o nome de mulher.