Senhora do Amparo, se me lembro, que das Angústias também
podia ser, pois que vai ao encontro do Filho já despido.
Vários homens a sustentam, que o andor é pesado de velhice.
Doze, ficando mais um de reserva para revezar o que vacile debaixo do maciço
madeirame. A Santa sai oscilando da capela, como obeso pêndulo lento, de cachos
negros e pastosos, manto de seda a oiro e de Menino ao colo, que não basta o
sacrifício de carregar o peso da Senhora a fazer lembrar ao longe a Sevilhana
ou a de Paris de Saint Eugène - mais pobre, muito mais pobre pois então, que o
Douro não tem bolsa que sustente o luxo.
No ano em que fui ver, a procissão saiu organizada pela Didi, beata oficial e quase anã, que ali a desgraça vem aos pares.
De túnica branca, com uma concha ao peito, a imaculada mulher, no ano da Senhora, levantava suspeitas pelo adro, fazia cochichar o mulherio, com a ameaça de prometida inovação.
Suspeitas infundadas já se vê.
A Didi respeitava a tradição, contradizendo a túnica que usava ainda
a cheirar a patchouli - que a Didi fez o Liceu no Porto -, embora o
incenso lhe vá cobrindo agora a desvergonha.
A inovação anunciada não era portanto de maior ofensa à
dignidade exigida pela Santa e pelo senhor pároco que rezava missa descampada
no altar de renda e margaridas sobre madeira tosca e pregos fundos, construção
dos mesmos homens que carregam aos ombros o andor, que o peso no Douro vem aos
pares.
A modernidade consistia num mecânico funil que ao sinal
beato da Didi e finda a missa, de padre a abençoar o povo, asas
abertas e misericordiosas, disparava milhares de quadradinhos de papel, brancos
e doirados, brancos e dourados, milhões deles pelo ar do adro, milhões de
papelinhos a voar no pasmo dos fiéis que se benziam em incensados êxtases.
Fiquei à espera que o padre erguesse os braços e nos
mandasse embora com Deus por companhia, para ver os quadradinhos de papel
jorrar como um milagre.
O padre abriu os braços – Ide em Paz e que o Senhor vos
acompanhe - e o rectângulo de brocado doirado que formou, avantajado mais
do que o costume, que era dia santo e a Santa o merecia, tapou a Didi e
o sinal combinado para o disparo.
O rapaz do funil mecânico, aflitos, ele e o funil, porque se
completa o par com a aflição do moço e a da pança cheia da máquina que espera,
esbugalha os olhos e no desespero de quem se vê à toa quando se espera o
cumprir de um plano, agarra as rédeas do destino e carrega no botão já com o
pároco a olhar de esguelha.
Dispara a inovação.
O povo tremeu com os quadradinhos de papel a vibrar no ar e
houve quem se comovesse até às lágrimas.
Tão lindo! Ai, que é tão bonito, Deus nos valha!
Via milhares de papelinhos a voar e pensei trocar cada um
que voa pela palavra amo-te.
Amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te,
amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te,
amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te,
até à eternidade do papel.
Humedeci os lábios e fiquei quieta. O quadradinho que me
tocasse a boca, ficaria preso. Seria então a única palavra verdadeira, a
derradeira sendo também primeira. Um amo-te branco ou doirado, que o
amor, se chega, tanto faz.
Nenhum tocou.
Percebi que guardamos a palavra com o pudor dos mansos e da espera e que esta espera tem o pudor dos tímidos. Não a dizemos à toa de papel, nos adros disparados pelas aldeias de toda a nossa vida, nas romarias das almas sem Didi, ou pelos ares à solta como pássaros. Afunilamos a palavra e temos medo, enchendo panças tristes de funis, na esperança de um sinal que faça o tempo certo e tempo de disparo. Não percebemos que não há nas nossas missas descampadas nenhum aceno que nos faça saber que o momento acaba de chegar.
Calamo-nos e vamos em paz com um deus qualquer por
companhia.