17.6.22

A Gaffe vê passar a procissão


No Douro há, de dois em dois anos, uma romaria em honra de uma Santa.

Senhora do Amparo, se me lembro, que das Angústias também podia ser, pois que vai ao encontro do Filho já despido.

Vários homens a sustentam, que o andor é pesado de velhice. Doze, ficando mais um de reserva para revezar o que vacile debaixo do maciço madeirame. A Santa sai oscilando da capela, como obeso pêndulo lento, de cachos negros e pastosos, manto de seda a oiro e de Menino ao colo, que não basta o sacrifício de carregar o peso da Senhora a fazer lembrar ao longe a Sevilhana ou a de Paris de Saint Eugène - mais pobre, muito mais pobre pois então, que o Douro não tem bolsa que sustente o luxo.

No ano em que fui ver, a procissão saiu organizada pela Didi, beata oficial e quase anã, que ali a desgraça vem aos pares.

De túnica branca, com uma concha ao peito, a imaculada mulher, no ano da Senhora, levantava suspeitas pelo adro, fazia cochichar o mulherio, com a ameaça de prometida inovação.

Suspeitas infundadas já se vê.

A Didi respeitava a tradição, contradizendo a túnica que usava ainda a cheirar a patchouli - que a Didi fez o Liceu no Porto -, embora o incenso lhe vá cobrindo agora a desvergonha.

A inovação anunciada não era portanto de maior ofensa à dignidade exigida pela Santa e pelo senhor pároco que rezava missa descampada no altar de renda e margaridas sobre madeira tosca e pregos fundos, construção dos mesmos homens que carregam aos ombros o andor, que o peso no Douro vem aos pares.

A modernidade consistia num mecânico funil que ao sinal beato da Didi e finda a missa, de padre a abençoar o povo, asas abertas e misericordiosas, disparava milhares de quadradinhos de papel, brancos e doirados, brancos e dourados, milhões deles pelo ar do adro, milhões de papelinhos a voar no pasmo dos fiéis que se benziam em incensados êxtases.

Fiquei à espera que o padre erguesse os braços e nos mandasse embora com Deus por companhia, para ver os quadradinhos de papel jorrar como um milagre.

O padre abriu os braços – Ide em Paz e que o Senhor vos acompanhe - e o rectângulo de brocado doirado que formou, avantajado mais do que o costume, que era dia santo e a Santa o merecia, tapou a Didi e o sinal combinado para o disparo.

O rapaz do funil mecânico, aflitos, ele e o funil, porque se completa o par com a aflição do moço e a da pança cheia da máquina que espera, esbugalha os olhos e no desespero de quem se vê à toa quando se espera o cumprir de um plano, agarra as rédeas do destino e carrega no botão já com o pároco a olhar de esguelha.

Dispara a inovação.

O povo tremeu com os quadradinhos de papel a vibrar no ar e houve quem se comovesse até às lágrimas.

Tão lindo! Ai, que é tão bonito, Deus nos valha!

Via milhares de papelinhos a voar e pensei trocar cada um que voa pela palavra amo-te.

Amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, até à eternidade do papel.

Humedeci os lábios e fiquei quieta. O quadradinho que me tocasse a boca, ficaria preso. Seria então a única palavra verdadeira, a derradeira sendo também primeira. Um amo-te branco ou doirado, que o amor, se chega, tanto faz.

Nenhum tocou.

Percebi que guardamos a palavra com o pudor dos mansos e da espera e que esta espera tem o pudor dos tímidos. Não a dizemos à toa de papel, nos adros disparados pelas aldeias de toda a nossa vida, nas romarias das almas sem Didi, ou pelos ares à solta como pássaros. Afunilamos a palavra e temos medo, enchendo panças tristes de funis, na esperança de um sinal que faça o tempo certo e tempo de disparo. Não percebemos que não há nas nossas missas descampadas nenhum aceno que nos faça saber que o momento acaba de chegar.

Calamo-nos e vamos em paz com um deus qualquer por companhia.