2.11.22

A Gaffe num fado


A Gaffe admite que nada sabe do fado.
Nunca esteve perto quando era do bom o que se ouvia. Descobriu-o já crescidinha, na voz amadurecida de Amália e, como seria de esperar, ficou deslumbrada com Grito, Lágrima, Gaivota, Primavera, Foi Deus, e tantos outros do género que se convencionou, se não se engana, chamar fado menor.

Não sente qualquer atracção pelas vozes masculinas do fado e só um pequeníssimo número de mulheres a emocionam. Aprendeu devagarinho a gostar de, Mafalda Arnauth, Ana Moura, Carminho, Maria da Fé e não vai muito mais longe.

A Gaffe não gosta de tascas ou de casas onde se canta o fado.
Foi uma vez a uma e apanhou com uma espécie de bêbados encapotados que fechavam os olhos enquanto se ouvia a fadista trinar; davam urros de vez em quando, como forma de incentivo ao canto; tinham catarro e tossiam para cima de umas senhoras oxigenadas, de bâton incendiado, vestidas de brilhos foscos e tinham uma unhaca de meter medo no dedo mindinho. Talvez não tenha ido à tasca certa, mas o certo é que nunca mais sentiu vontade de voltar a entrar numa.
Talvez por não ser de Lisboa. Talvez por ser só meia portuguesa.

A Gaffe, portanto, é uma perfeita nódoa fadista e uma desconhecedora profunda do mistério desta canção.

Tem no entanto uma aversão pouco saudável aos putos que cantam fado.

A Gaffe ouviu um deles, todo lampeiro, com um ar latente de vedeta, arranjar força para estragar os últimos versos do Foi Deus. Vê-lo ser aclamado por fadistas veteranos custou-lhe tanto como ouvir a diva dos Gift a abrir todas as vogais de Gaivota transformando uma extraordinária melodia e um poema magnífico, cantado pela saudade encarnada e pela tristeza soturna e quase desesperantemente reprimida, que existia na voz de Amália, numa cançoneta de concerto adolescente-chic. Vendeu, rendeu como milho de pipocas, e isso é o que se quer.

A Gaffe acredita que o fado tem de ser cantado pela maturidade, porque só o saber de experiência feito provoca a essencial emoção, comoção, que permite incluir no fado a dolência do entristecimento, o doloroso timbre, o lamento pungente da saudade, o quase abandono de identidade em nome de outrem que sufoca ou por nós respira e a transfiguração do mito, sentido como resposta a uma falta, a uma ausência que impossibilitada o preenchimento e que mesmo assim é produtora de resposta, mesmo que o mito tenha a ver, neste caso, com a anulação limite do protagonista, com a morte física ou com a inutilização altruísta do ser rejeitado.

Por isso, ninguém convence a Gaffe que um puto de 13 anos é capaz de encarnar na voz toda a densidade deste fenómeno. Por isso detestou o rapazinho a desarranjar Foi Deus, com a sua vozinha branca, deslavada e nua.

A Gaffe pode não saber nada acerca do fado, mas suspeita que as cordas vocais desta canção estão só no coração de gente grande.