21.6.24

A Gaffe caprichosa


Depois de ter fechado a alma, uma rapariga tem de se preocupar com a vida e a Gaffe pensou chegada a altura de alterar a sua, tão pequenina. Não suplicou aos senhores do Querido, mudei a casa porque sempre receou a qualidade do Leroy Merlin, temendo em simultâneo que lhe surgisse o Cláudio Ramos a deitar as cartas - não adianta perguntar a causa da aliança que a Gaffe fez entre este querido e a sorte, pois que é mistério.

Arrancou do coração - cúmplice de todas as horas contidas em trinta e alguns anos -, as montanhas de paciência de que necessitou para desatar o espartilho da sua profissão e deixou de exercer - apenas de exercer -, medicina. Definitivamente. 

Partindo deste facto, a Gaffe estende a sua indolência à dúvida existencial que se sintetiza na questão seguinte:

Qual o momento certo para mudarmos a vida ou, pelo menos, a base em que a vida está impressa?

Embora a pergunta não implique necessariamente Agatha Christie, é declaradamente um caso CSI provável e inconsolavelmente irresolúvel. É contudo importante uma investigação acerca das motivações que estão na base do desejo de uma radical ou de uma subtil mudança na forma como vivemos.

A urgência que sentimos de alterar o corte de cabelo e tornamo-nos um Fábio Coentrão em vez de Grace Kelly; mudar a cor do bâton, surgindo com lábios esverdeados como se tivéssemos sugado, furiosas, um calipto de corantes; desatar a imitar o Everest trocando as pindéricas sabrinas por uns vertiginosos Manolo Blahnik; aparecer de speedo um número abaixo do confortável e do aceitável, quando sempre usamos tenebrosas bermudas pelos tornozelos - mesmo sabendo que as regiões antes impedidas de bronzear dificultam a ousadia -, ou simplesmente fazer brotar da nossa boca mimosa o cacto de um palavrão grosseiro, electrocutando a elegantérrima forma com que sempre nos exprimimos, é sintoma de esgotamento, de saturação do quotidiano, de vontade de seguir a estação que se renova, de tédio, de fastio, do que somos, de necessidade de nos termos, só para nós, de forma reanimada, mas é também o anseio de sermos vistos pelo Outro de uma maneira encantatória, de por ele sermos olhados com os olhos da surpresa e do reencontro, de o fazermos acreditar que existe mais em nós a descobrir e de nos fazermos acreditar exactamente nisso.

A qualquer momento surge esta urgência tranquila de sentirmos que temos dentro a inesgotável capacidade de mudarmos. Quando não temos instrumentos reluzentes para levar a cabo esta ambição, usamos uma cor diferente de bâton, desequilibramo-nos em cima de sapatos a que jamais nos habituaremos ou mandamos bardamerda o rapaz que sempre nos teve como ponto assente.

No caso da Gaffe, neste específico caso corriqueiro, o desejo de mudar este seu canto da vida, foi provavelmente apenas um capricho.
Não se deseja alterar o vazio quando não existe ninguém do outro lado da porta.