20.6.24

A Gaffe num voo de gaivota


Regresso finalmente à luz da superficie plana que fora de mim suporta o que de frio tem a vida inteira, como que chegada a um corpo numa manhã de tronco nu. Regresso ao corpo da manhã de tronco nu. À curvatura do peitoral esquerdo onde lateja com mais força o coração. Batida certa, compassada e branda. Regresso ao corpo de socalcos como quem se perde, como quem espera num porto o marinheiro que se quebrou no mar, ou dentro da orquídea da nuvem sobre as ondas, e abro as mãos despidas sobre a pele até a pele doer devagarinho, até sentir os peixes dentro dela, retorcendo escamas, reflectindo a lua e mordendo a água que é suor e pedra.

Lá fora a minha Avenida passa por mim e entra no meu peito.

Desenho no vidro da partida a saudade que chegou precipitada. Sempre adiantada, a saudade em mim.

Durante todo este pouco tempo de interregno, um tempo da Avenida com um nome tropical, um tempo de Ribeira Negra e gritos de gaivotas, esperei sem destino ou marca, quieta e obediente, que dentro de mim se rasgasse uma janela que perdesse o que sou, quase consciente da minha vacuidade e da inutilidade dos meus olhos. Durante o tempo da Avenida não fiz perguntas a não ser por dentro, sem nunca me esquecer por um instante que a alma não responde ao ritmo do bater do coração da dúvida.

Olho agora este meu Porto quieto e percebo o modo como se fechou cobrindo em mim aqueles que passavam. Um imenso cão de guarda de sentinela a um berço.

É tempo de me entregar à minha outra luz e nenhuma outra luz me lavou o corpo como a do meu Douro.

O Douro dentro da chuva solta nos caminhos, preso nos telhados, procura a minha alma para se abrigar e vai encontrar a minha Avenida coberta de mar agarrado às pedras e um Porto inseguro com sabor a vento.

Espera-me o alvorocer sobre os telhados que doura a saudade do Douro no meu peito. Cachos de janelas, parras de cortinas e a quietude dos socalcos dos andares onde canso os olhos na subida. O Douro despovoado na  minha Avenida e um rio no voo do pardal. A concertina num cesto de vindimas e o meu corpo nu na valsa de calcário.
No Douro é madrugada e a luz ainda não tem sombra. Vem azular as coisas, recortar no espaço as silhuetas das árvores, dos anjos do lago, do corrimão de pedra. Apontar os caminhos abrindo os labirintos de sebes e de arbustos. Introduzir os dedos nas frestas dos ramos escuros dos pinheiros mansos e deixar lâminas nos degraus cinzentos que desci.
O frio chega sempre em gotículas minúsculas. Pousa na pele e rebenta como bola de sabão. Espero quieta dentro da quietude e descubro que o peso assombroso da paz cheia de silêncio, oprime. A imobilidade de tudo o que é visto impregna a mais opressiva das serenidades, absorve o que somos e faz aluir a coragem que existe em enfrentar toda a luz que surja sem remorsos.

Espero sozinha no centro do maior sossego. No centro da mais aguda e dolorosa imutabilidade do tempo e a ausência de sons, a mais absurda inexistência de sons, aperta a minha espera, torna-a gotícula de frio na pele de bola sabão do meu sentir que preso fica nos fios do temor que cresce na manhã que chega lenta a azular o dia.

O carro rompe na Avenida. Voo depressa. Quero chegar ao Douro manhã cedo.