19.6.24

A Gaffe claramente exagerda


A Gaffe retrocede pois que não tem a certeza de ter ouvido Marcelo Rebelos de Sousa a referir-se a uma presidenta com que se cruzou num país estrangeiro.

A Gaffe faz marcha atrás pois não sabe se ouviu bem Marcelo Rebelo de Sousa a declarar que uma presidenta tinha uma opinião semelhante à sua.

A Gaffe voltou para trás para se certificar que Marcelo Rebelo de Sousa falou numa presidenta de um país estrangeiro.

Marcelo Rebelo de Sousa esbandalhou mesmo a presidenta.  

A Gaffe já desistiu. Se um Presidente da República consegue tão linda e descaradamente tropeçar na sua língua – literal e metafórica -, é de concluir que ainda tem muitíssimo para ler.  

Não é agradável perder tempo com Marcelo - Marcelo encarrega-se de o perder sozinho -, até porque a Gaffe acredita que desta vez corre o risco de se tornar maçadora, tendo em conta o rol de pequenas indignações que hoje por aqui deslizarão. Como diria um pivot da nossa praça, são pequenos detalhes que escorregam em pormenor por estas avenidas.

Olga Esther
A Gaffe passa então os olhos por Clara Não que nos avisa que passamos mais tempo na escola a estudar o Monstro do Cabo das Tormentas do que a falar de autoras mulheres.Esta pobre rapariga ruiva não entende muito bem o preclaro título escolhido. Falar do Adamastor em nada destrói a capacidade de se estudar autoras mulheres – numa subtil, provável e agradável referência ao Presidente e uma denúncia à quantidade exagerada de autoras homens contida nos cânones literários que se movem lentos.

Clara Não continua:

Claro que é importante olharmos para os clássicos, mas não conseguimos cativar os jovens quando os estamos constantemente a aborrecer. Basta pensar: quantas vezes ouvimos alguém dizer, com honestidade, “Amei a descrição dos azulejos d’Os Maias”? “O meu escritor favorito é Luís de Camões”?, ou “O meu ídolo é Gil Vicente”?

A Gaffe, para além de suspeitar que os azulejos queirosianos não são propriamente cerâmica destinada a forrar os nossos corações, lembra-se que foi o avô - que também a treinou a dividir orações e a classificar a métrica -, que a ensinou a ouvir nas estrofes de Os Lusíadas – o verbo nunca esteve errado -, os cintilantes e estridentes ruídos das batalhas; que lhe mostrou o modo de se amar constelações; que a ensinou a construir um relógio de sol; que a guiou nas rotas e nos mapas, avançando sempre com o avisado Restelo ao longe; que lhe mostrou todas as madeiras, todos os ouros, o sangue e dolorosas vontades, todos os medo e todas as coragens, todas as insidiosas vinganças de tertúlias divinas – e mais que não se diz por ser verdade -, e sobretudo a instruiu a a viajar ao encontro daquela cativa que o fez cativo

(…)
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
(…)

Foi o avô que a conduziu pelas alcoviteiras ruelas de Brísida Vaz - Eu não sei quem te cá traz… -; que, com ferramentas de ourives, a fez sorrir à astuta Inês Pereira que preferiu o burro por desilusão; que a fez ouvir Mofina Mendes, humano e ternurento lirismo ainda medievo e que lhe mostrou como é fabuloso rir, castigando os costumes, ou chorar castigando aqueles que os tornam trágicos.

E tantas outras vidas e contextos!

Fernão Lopes, Zurara, Rui de Pina, Garcia de Resende,  Bernardim Ribeiro, Cristóvão Falcão ou Sá de Miranda.

Tantas outras vidas!

Voltemos a Clara Não:

Há uma dificuldade real em criar hábitos de leitura em crianças e jovens que cada vez mais estão colados a ver vídeos de trends sem qualquer informação útil – afirma.

 Reconhecer as letras, saber uni-las, construir sílabas, erguer frases e chegar aos fins dos parágrafos é céu-aberto para uma criança.

Esta felicidade estende-se aos adultos que ficam libertos da maçadoria que se vinha tornando ler ou inventar histórias todas as noites à beira sono e ao canto da exaustão, quando a criança reivindicava o direito de ouvir a construção da fantasia pelas vozes que lhe desvendavam, que lhe decifravam, os signos e os mistérios contidos num livro.

No início, repetir as mesmas histórias era uma bênção que nos parecia maldição até batermos contra a vontade infantil de ouvir sherazades improvisadas e inábeis.

Éramos três. O livro, a criança e a pobre criatura cansada que noite após noite servia de intermediária entre a fantasia e a avidez de sonho da ouvinte.

- Hoje é a tua vez. Ontem contei duas seguidas.

Agora que já sabe ler, é um alívio. É autónoma. Já permite que os deixemos, a ela e ao livro, entregues um ao outro.

Agora que já sabe ler, não sabe ler.

Reconhece as letras, sabe uni-las, constrói sílabas, ergue frases e chega aos fins dos parágrafos estafada e perdida por completo no labirinto que foi descobrindo, mas onde ainda não encontrou saída. A frase vai-se erguendo sem sentido. Lida, mas não entendida, como se cada palavra conquistada se perdesse no tempo que leva a conquista e que impede que a união das parcelas não tenha resultado.

Ao parar de ouvir o contador de histórias, porque se tornou capaz de as procurar e decifrar sozinha, ao ser entregue sem apoio ao livro, deu início a uma luta que perde noite após noite, à beira do sono já despovoado. 

Cultivar o prazer de ler numa criança é continuar a ler-lhe, mesmo quando sabemos que ela já vai tocando as frases com tranquilidade. É permanecer três, mesmo pensando que dois já bastavam.
A Gaffe suspeita que descobrimos isso apenas quando a criança nos avisa que saltamos uma frase, quando nos aponta, com o dedo a passear nas palavras certas, lendo, palavra por palavra, o erro que cometemos descrevendo em tons de verde a capa do príncipe, quando é lilás para condizer com os olhos da princesa e nos retira, maternalmente, o livro da mão.

A Gaffe acredita que descobrimos isto apenas quando ouvimos, numa noite qualquer à beira do cansaço, a criança declarar com convicção que não lemos como deve ser, desatando-nos o livro que abrimos cautelosos e soltando, como deve ser, a história que nos vai adormecer.

A partir desse momento, todas as palavras deixam de ser nossas, que somos tias tontas que não sabem ler, para se transformarem no ninho dos sonhos que fazem leitores. 

Jonathan Wolstenholme

João Miguel Tavares, por quem a Gaffe não nutre especial simpatia, não impedindo esse facto de estar disponível para o ouvir e ler com respeito e atenção -, foi apanhado há tempos idos, a propósito da polémica suscitada pela obra de valter hugo mãe esfrangalhada pela pudicícia, a tentar ser engraçado recortando uma frase do livro A Vida Mágica da Sementinha de Alves Redol, comprovando o que já sabemos, ou seja, que uma frase decepada e arrancada de um contexto, permite ser guiada para onde a nossa sardinha vai assando ou esturricando.

As crianças ficam aborrecidas com Alves Redol. Não devemos ler Alves Redol às crianças. Não devemos ter roseiras nos recreios porque as crianças se podem picar. Verdade. A Gaffe não inventou agora.

O colunista finaliza a intervenção suplicando que a obra de Alves Redol seja retirada por ofensa ao pudor do programa dos alunos do 5º ano. A pretensa ironia é regada com um sorriso galhofeiro e não passaria por mais se não fosse a adenda que João Miguel Tavares decide colar ao já demonstrado. O jornalista acrescenta que há uma razão, bem mais séria, para o seu rogo. A obra é horrível. Repete horrível já na risota.

É improvável que João Miguel Tavares, com filhos que a estão a estudar, não tenha lido a obra em causa, mas é mais do que evidente que o colunista desconhece o que é ensinado no grau de instrução que os petizes frequentam.

A obra de Redol que o jornalista condena é a escolha perfeita para a faixa etária eleita para a estudar.

Existe no pequeno livro uma miríade de possibilidades de intertextualidade e de interdisciplinaridade. A obra permite uma cumplicidade notável, sobretudo com as Ciências e com a História - havendo mesmo trechos que deviam ser lidos pelos professores destas disciplinas, usando-os depois como impulso para a descoberta e conhecimento do que querem transmitir -,  e as personagens que a povoam estão impregnadas de uma poeira poética com um sabor a paisagem alentejana tantas vezes dorida que permite um encontro com uma realidade menos amena e menos acolchoada.

Os pássaros que se espalham nas folhas da obra, os seus pequenos conflitos, as suas emoções, os seus amores, permitem que o pequeno leitor se veja ao espelho e contribui para uma mais suave entrada num estádio que antecede a perturbação da adolescência; a clareza com que é revelado o esplendor da diversidade e a importância que esta deve ter; a permeabilidade da obra a outros dados oriundos da história, da ecologia ou da biologia e a poética que se encarrega de acordar a fantasia e povoar o imaginário das nossas infâncias, fazem da escolha do livro um exemplo maior de séria pedagogia e de João Miguel Tavares, que o considera horrível - assim, à toa, só porque assim é engraçado -, um rapaz muito propenso a comportar-se como os encarregados de educação que censuraram valter hugo mãe.

Ouçamos de novo Clara Não:

(...) Ora, garanto que não é com falta de representatividade que se resolve o problema. Precisamos de mais atenção a livros escritos por mulheres, de representatividade de cores de pele, de enredos cativantes, de personagens e autores, e de representatividade LGBTQIA+ nas obras e excertos exemplificativos do currículo de Língua Portuguesa.

Não existe boa e má literatura e a Gaffe também suspeita que não existe literatura feminina, colorida, gay, de aeroporto ou de WC.

Ou há literatura ou não há literatura.

É tão errado referir determinada obra como má literatura, como classificar uma outra como pertença do inverso. É maçadora a discussão em redor dos fenómenos que permitem o reconhecimento dos escritos como peças literárias, nem sempre os cânones incluem as que eventualmente se consideram dignas de figurar no seu historial e as exclusões correm sempre o risco de encontrar discórdia, mas é sempre possível treinar a capacidade de se reconhecer instintivamente um bom livro, porque, não existindo boa e má literatura, existem contudo maus livros. Não é conflituoso reconhecer os agrupados nos universos literários que usam todos os crivos que foram construídos ao longo de séculos pela Teoria da Literatura, mas os que sobram estão na origem de uma questão que permanece:

Ler seja o que for, é melhor do que não ler nada?


A resposta afirmativa que se justifica alegando que ler seja o que for, gera o hábito de leitura, promovendo-a e incentivando-a, não colhe dividendos. Admitir que é possível ler a Maria ou medíocres romances de cordel e desaguar numa escolha mais criteriosa e de maior qualidade no futuro, é esperar sentado que chegue Godot. Um mau leitor é demasiadas vezes iniciado pelo consumo de peças de duvidosa qualidade literária para facilmente retroceder, alterando o caminho. Os maus livros são livros fáceis e a facilidade é aditiva.

A sujeição do leitor, por exemplo, ao uso de fórmulas nos romances de aventuras juvenis de sucesso mais do que adivinhado, quando não aliada a alternativas mais complexas oferecidas por outras obras do género, torna mais fácil o desenvolvimento do que se convencionou chamar Síndrome de Blyton. A repetida fórmula - grupo + problema/mistério + envolvimento do grupo + perigo + resolução do conflito pelo grupo + final feliz -, origina um casulo mental que se torna difícil quebrar com a introdução de premissas diferentes ou mesmo alterando a sua ordem. Um consumidor assíduo e exclusivo destas fórmulas, é mais susceptível de se tornar um adulto com maior dificuldade em acompanhar uma obra que não possui estas artimanhas ou estas armadilhas, e aos que partilham esta opinião chamará intelectualóides, presunçosos, castradores da liberdade de ler, fascistóides ou mimos similares.

Dificilmente gostaremos de Proust quando sempre caminhamos à sombra das Marias em flor ou nos viciamos em medíocres guerras de tronos, sagas vampirescas e melosas tramas de cordel delicodoce.  

A apelidada educação para a leitura é uma oficina de trabalho árduo, mas essencial para a formação de um bom leitor. Nesta tarefa temos a obrigação de contar com a extraordinária capacidade de selecção daqueles que se iniciam nestas andanças. Seria tontice esquecer que a clássica Literatura Infantil é uma literatura de apropriação e que foram as crianças que se apoderaram de obras que não lhes eram destinadas. A Cabana do Pai TomásOliver Twist ou Huckleberry Finn e mesmo Mulherzinhas foram retirados da biblioteca dos adultos por crianças que as entregaram à mais apurada lista de literatura infanto-juvenil.

Se o primeiro passo na construção de um mau leitor se faz demasiadas vezes com a escolha, aquisição ou oferta de um mau livro, não é lícito concluir que um bom leitor se macula quando toca numa obra menor. Não a proíbe ou excomunga, nem se esgadanha quando encontra uma pelo caminho. Normalmente ignora-a de forma natural e quando não o faz, passa por ela sem por ela ser tocado.

A literatura universal está nas mãos de todos e é de tal forma imensa e povoada que perder tempo - e que imensa perda de tempo! -  com um mau livro, quando poderíamos em troca tricotar um cachecol, devia ser entendido como pateta ou, no mínimo, fazer com que nos sentíssemos a usar um pechisbeque quando nos entregam todas as colecções de joias que a nossa vida pode imaginar.


Nota de rodapé Todo este rabisco teórico, salpicado por uma ligeira demagogia e polvilhado por uma dose substancial de blá-blá-blá, deve ser lido como uma espécie de esfregão da consciência um bocadinho pesada da Gaffe que é indiferente, vergonhosamente indiferente, ao que os outros costumam ler, se está borrifando para os livros que se vendem ou se deixam de vender e que, no que diz respeito à leitura, segue o famigerado "cada um sabe de si e os editores sabem de todos".