25.7.24

A Gaffe conta outra vez


Tentei há imenso tempo, uma aproximação presunçosa e mais ou menos freudiana às histórias de fadas.

Recupero o que na altura foi escrito, pois que nada se alterou e porque encontrei ilustrações extraordinárias que quero muito mostrar.

Na altura usei apenas O Capuchinho Vermelho e A Bela Adormecida que são, sem hipótese de contradição, duas obras com direito a figurar nas estantes da memória de todas as crianças. Não fiz, nem pretendo fazer por estar longe de ser capaz, uma análise exaustiva das obras. Aflorei apenas o aspecto que ilustra de certo modo o que sempre pensei acerca do assunto.

O primeiro conto fala de uma menina que, usando um capuz encarnado, deverá no seu passeio pelo bosque, passar a ter cuidado com o lobo que a espreita com intuitos devoradores. Numa primeira e quase imediata aproximação, descobrimos a cor do capuchinho que, segundo uma data considerável de analistas, representa a menarca, a primeira menstruação de uma jovem. A rapariga, fértil, deverá cuidar da sua segurança e do afastamento do possível agressor e/ou desflorador, aqui transformado em lobo cujas características estão desenhadas de modo a ser considerado fatal. A lição possível é dada de modo eficaz e o aviso subliminar fica registado. A menstruação, metaforicamente encapuzada, é sinal claro, vermelho, para que a jovem menina passe a observar os sinais de perigo vindos do bosque. Uma agressão não pode, ainda hoje, ser evitada usando o medo do lobo que espreita?

É também curiosa a quantidade de sangue que se derrama nestes dois contos - mas não exclusiva destes. O sangue metafórico do capuz e o sangue provindo da picada que adormece a Bela. Desta feita, no caso da Princesa catatónica, ser picada é ser desflorada. Há um elemento perfurador, o fuso, que penetra na carne da jovem que tinha atingido a idade em que se tornaria normal uma iniciação sexual. Como castigo, a adolescente adormece e terá de ser o Escolhido a tentar reanimá-la com um beijo após ultrapassar uma série de provas que demonstram que é o merecedor. O feitiço é imposto pela bruxa - interessante também esta dualidade entre bruxa/fada, fada madrinha/feiticeira, que está muito próxima da imagem da mãe, criatura benévola versus criatura malfazeja - e é quebrado por imposição - permissão? - de uma fada com a condição de ser um corajoso, garboso e aprovado jovem a reanimar a princesa picada e ensanguentada. Neste caso, o beijo poderá ser leve e pueril, ao contrário do da Branca de Neve que será obrigatoriamente mais profundo de forma a retirar da garganta o pedaço de maçã envenenada. Muitas vezes ignorada ou dispensada esta característica contribui de modo decisivo para a perenidade e a intemporalidade da história.

Estes dois exemplos, mostrados de forma simplificada e incompetente, dizem dos modos sublimados de abordar o sexo nas histórias para as crianças, transmitindo noções e conceitos que se enraízam no inconsciente colectivo e estão directamente relacionados com os chamados arquétipos da humanidade. Não são exageros de mentes sórdidas capazes de encontrar, de modo freudiano, o sexo nos anjos. Até porque são raros - se é que há alguns - os contos onde os querubins se tornam personagens dignas de eternidade oral ou escrita. Por não terem sexo, acabam não contáveis.

A minha aproximação, pecando por defeito, é necessariamente curta e restrita e está apoiada nos mais básicos alicerces do corpo construtor da clássica narrativa infantil susceptível de atravessar gerações sem modificações na sua estrutura essencial. Carece de maior desenvolvimento que não tem lugar aqui e deveria, logicamente, ser aliada a outras que com esta fornecem o estatuto de obra maior ao que é contado.

Importantíssimos são, entre outros e a este propósito, os texto de  Ana Gerschenfeld e de Jamshid J. Tehrani.

A violência, a morte, a crueldade, a disfunção - sobretudo no âmbito familiar - e o universo do fantasioso povoado por ogres, fadas, duendes e bruxas, são pilares quase totalmente ausentes na literatura infantil da actualidade que oferece à criança uma planície asséptica, afastada e purificada, repetindo e retratando um quotidiano aparentemente inocente, clarificado e isento de implícitas referências aos arquétipos edificadores e organizadores do inconsciente colectivo.

Mas o importante é rever:











Uma das inúmeras exigências feitas a uma obra destinada a crianças é a da utilização de signos, se quisermos de significantes e de significados, numa prática sócio-semiótica progressiva, susceptíveis de se assimilarem com facilidade pelo destinatário cuja inteligência abstracta ainda é incipiente.
Fáceis de ser assimilados, não significa nem justifica de todo um uso limitado de vocábulos simples ou, muito menos, a utilização de uma espécie de linguagem débil, assumindo-se que é nesta restrição forçada que a leitura se processa com maior facilidade numa obra infantil.

A dificuldade do tradutor que tentava com algum desespero encontrar no francês o vocábulo próximo - mas não equivalente - da portuguesa crónica, é absolutamente desprovida de senso. A palavra crónica, dizia-se, não pertencia ao normal e usual, quotidiano, universo infantil e como tal deveria ser substituída por uma outra mais acessível, mas que gerava alguma dificuldade em achar.
Esta posição é exemplo de uma certa anomalia na definição e na avaliação dos objectivos da literatura infantil actual. O uso de uma linguagem apurada e exigente que recorre a signos, fonemas, vozes, termos e sons, eventualmente afastados do universo da criança, não é de forma nenhuma um handicap tornando-se, pelo contrário, uma mais-valia. Entrega à criança a possibilidade da descoberta, processamento e desenvolvimento da língua e da sua capacidade de a interpretar e, em última análise, de a amar.

Ao contrário da, por exemplo, esmagadora maioria da literatura infanto-juvenil editada em Espanha, que tem como um dos seus critério de selecção a qualidade e riqueza vocabular, a portuguesa actual, é, salvo raríssimas excepções, de uma enorme pobreza nesta área - não falamos sequer da Inglesa com uma tradição de apuro, exigência e qualidade invejáveis.
Escreve-se para minúsculas entidades desprovidas de inteligência, incapazes de raciocínios ligeiramente mais elaborados e um pouco mais que idiotas ou imbecis. Escreve-se procurando o mais incipiente do vocábulo, a mais simplificada das imagens e a mais irrelevante das frases. Escreve-se quase exclusivamente com um intuito moralizador - compreendido numa abordagem diacrónica - muitas vezes preconceituoso e demasiadas vezes canhestro, como se fosse esse, ainda hoje, o objectivo primordial da literatura para a infância. Escreve-se para formar leitores sem se ter em conta que não é uma avalanche de edições pouco criteriosas que os formará, nem a ausência do factor surpresa de uma voz, impulsionador da procura e da descoberta externa à obra, paraliterária ou metaliterária, que os desenvolverá.

Escreve-se pobre em Portugal, para pobrezinhos.