Não creio haver nada de especial em todas as cartas que escrevemos.
As de amor são ridículas, pelo que dizem. Estranham-se umas, depois vão-se entranhando. Outras entranham-se mesmo sem estranheza. Esquecem-se outras mesmo antes de se rasgar o envelope. Existem as que não sendo abertas, estão já lidas e há ainda aquelas que, embora a nósremetidas, parecem ter sido escritas para que a posteridade as conserve e leia.
Acredito que estas últimas sejam as piores. Trazem o mofo do tempo que querem ver passado.
Há, no entanto, as cartas que não jogam com palavras. Não são cartas de jogar. São cartas de verdade. Ridículas, portanto, porque a verdade é quase tão ridícula como o amor.
Jane Austen escreveu várias a Cassandra num século e num lugar em que era bem difícil ser-se ridículo e a cumplicidade, a simbiose e a estranha compreensão mútua, surgem no modo com que Jane mancha o papel, escrevendo nas margens, escrevendo entre as linhas, escrevendo sobre o escrito, escrevendo voltando e revoltando o papel. Preenchendo tudo, como se nada mais houvesse para dizer depois ou como se tudo tivesse de ficar unificado.
O documento resulta quase uma espécie de palimpsesto e, no entanto, Cassandra, do outro lado, reconhece, no instante em que Jane a dobra para a enviar, o lugar exacto da assinatura da irmã.
O documento resulta quase uma espécie de palimpsesto e, no entanto, Cassandra, do outro lado, reconhece, no instante em que Jane a dobra para a enviar, o lugar exacto da assinatura da irmã.
Estas cartas, Senhor, são como pão.
Na imagem - carta de Jane Austen a sua irmã Cassandra, 8-9 Fevereiro de 1807 - Southampton