11.10.24

A Gaffe amanhecida


I
O dia amanhece frio e azul, devagar, no pássaro pousado no parapeito da janela.

Do quarto virado para Norte vejo ainda floridas as sardinheiras espanholas, vermelhas a morrer como um tango já dançado.

A mistura dos perfumes do Douro e da luz calada do dia que começa enlaça os cortinados, como amiga sentada a ler com os sons de um piano ao lado.

Tenho a obrigação de ser feliz.
II
O vento impede o voo das gaivotas. Planam paradas no ar que cheira a maresia ainda mais salgada do que a que chega à varanda do meu quarto.

Da linha em que o mar encontra o céu há uma barra cor de salmão, pálida, e depois o azul claro, tão claro que é quase transparente sobre a folha de platina da água mansa.

A mesa que escolhi é da cor das laranjas sem sabor. A luz agarra os gomos das cadeiras.

Há uma mulher feia de castanho a rabiscar papéis com tinta verde. Duas adolescentes amarelas a pipocar segredos e o rapaz de avental branco e dentes aramados que me serviu o café negro e espesso, encostado ao balcão a olhar as rochas cheias de luz cinza.
Estendo as pernas, cruzo os braços e a cabeça tomba para trás.

Fecho os olhos e deixo que a rapariga de sorriso cor-de-rosa me foque finalmente e faça clique no telemóvel vermelho e ansioso.

Estou vertiginosamente só. Não tenho medo.

A manhã pousada e fria, cor de opala e luz, vem pentear-me.