10.5.21

A Gaffe poeirenta


 Foi com Raul Brandão - tão arredado do cânone literário! - que me apercebi da magnitude do mistério que um texto pode conter.

Lia A Morte do Palhaço e em cada página que era lida dava conta, quase sem disso ter consciência, das infinitas arquitecturas das palavras e deixei-me deslumbrar pelos edifícios que se formavam e erguiam incessantemente num jogo polissémico que se multiplicava por frases nunca lidas até ali.

Foi com Raul Brandão que entendi que talvez seja a consciência da mutabilidade da frase e da sua capacidade de se unir a outras num encadear eterno, como até ali nunca foi história, que me fez acreditar que não basta soletrar rabiscos, que não basta perceber o mecanismo da língua, que não chega termos a capacidade de colar um vocábulo à frente de um outro, para que um texto nos atordoe.

Não basta.

Acredito que reconhecer um escritor se faz nas catacumbas da alma, talvez muito antes da obra ser sujeita ao escrutínio do bisturi da análise literária.

É esmagador o poder do escriba capaz de - com palavras gastas e velhas como a morte -, construir paisagens originais, absolutamente desconhecidas pelos outros, nunca vistas, nunca lidas, nunca sentidas da forma que nos é oferecida como quem nos entrega a surpreendente simplicidade do movimento eterno, a espantosa floração do único.

Talvez seja isto que me faz acreditar que apenas o conhecimento profundíssimo dos livros nos faz perceber que não passamos, quase todos, de pequenos tontos, ingénuos, iludidos, fraudulentos, hortofloricultores de pechisbeque, a usar as mesmas pedrinhas de poeira, umas atrás das outras, tentando que os espaços minguados que ocupamos tenham chão. Usamos coisas velhas para acabar como partimos, envelhecidos e de mãos vazias, porque a poeira se esgueirou por entre os dedos.

Apenas os que usam o que velho o tempo foi fazendo, fazendo do que o tempo fez velhice o esplendoroso encontro com a surpresa, acabam a escrever.


Talvez da derradeira terra, das decompostas recordações das almas, do estrume que pesa sobra as vidas, do corpo que nos morre a cada passo e da morte que resta em nós antes da alma, talvez daí – talvez, que nada é certo -, talvez e só então, se deslace o voo de uma só palavra num bater de asas mínimo e perfeito.