11.9.21

A Gaffe num chuvisco campestre

A Gaffe num chuvisco

04/02/2015


Só as mulheres sabem a angústia que é escolher o que vão usar para jantar com um homem lindo de as matar que conheceram na véspera.  

Não querem ter de lhe arrancar com diluente os olhos do decote, mas também não podem parecer a irmã Lúcia. Há que encontrar o equilíbrio do trapezista e não esquecer que nunca existe rede.

Depois de mais de uma hora de hesitação, a Gaffe escolheu o vestido verde atenuado, com decote em barco, sem qualquer ornamento imbecil, cintado e de mangas compridas, Um clássico Jackie O. que pode perfeitamente ser apoiado pelo colar de pérolas rente ao pescoço que esta rapariga esperta pediu emprestado à avó. Um casaco vintage curto, quase etéreo, quase nada, transparente, o chamado casaquinho, ajuda a compor a imagem.

As pantufas foram espancadas e nos pés o compromisso entre a elegância e o conforto, não vá o agricultor pensar que tem na frente uma tesoura de poda.

A Gaffe decidiu não se socorrer da parafernália de tolices com que cuida do cabelo e deixou-o solto, provocando o incêndio de caracóis habitual.

Ele aprovou.

Uma mulher sabe quando acerta.

Para quebrar a finíssima camada de gelo, no início do jantar, a Gaffe decidiu levantar uma bigorna e esbardalhar a ténue superfície da conversa.

- Não entendo como consegue viver tão longe de tout Paris – lindo!, mais uma tirada destas e a Gaffe espeta o garfo nos olhos.

- Não estou assim tão isolado. Sei por exemplo que tout Paris não usa pérolas a não ser nas capitais.

A Gaffe sente que o alvo do garfo se alterou de súbito. Tem de telefonar à avó para confirmar se cometeu um deslize.

- Perto de si, todas as aldeias são capitais. – Nenhuma ruiva se deixa abater com facilidade e a polissemia da última palavra foi acentuada com um sorriso aberto.

Medidas as lâminas, o jantar foi agradabilíssimo. O homem fez com que a Gaffe se risse. Por muito que se pense o contrário, uma mulher bem-humorada é muito difícil de fazer rir. O humor com que vê o universo torna-a demasiado exigente no que diz respeito ao humor dos outros.

Saíram tarde.

Chuviscava. O cabelo da Gaffe odeia humidade. Os caracóis multiplicam-se e há um que invariavelmente lhe tomba para os olhos. O homem enrolou-o no dedo.

A Gaffe sentiu que o tempo devia parar e o tempo parou.

A Gaffe ainda está no meio da chuva presa por um caracol a um dedo de um homem.

   

A Gaffe campestre

09/03/2015


Os senhores Presidentes das Câmaras da região do Alto Minho devem com urgência dedicar uma lasca substancial de atenção às suas estradas.

Bem sei que viajar num Mercedes 300D, classe W123, seja lá o que isso for, é como ser transportada às costas de um canguru, mas ter dificuldade em largar o cinto de segurança, porque o apertamos em demasia com receio de fracturar o crânio nos embates contra o tejadilho e dois minutos depois de ter chegado ainda sentirmos as maminhas aos saltos, não se deve apenas à suspensão miserável do trambolho vintage.

A casa é belíssima! Em restauro acelerado, o piso térreo, onde no passado eram os aposentos das vacas, foi aberto e transformado num gigantesco open-space onde coexistem sala de jantar, sala de estar, escritório e biblioteca – maioritariamente anglo-saxónica, para meu desgosto -, sem que nenhum destes espaços sem fronteiras nítidas colida com a harmonia e equilíbrio do seguinte.

O andar de cima, com uma maravilhosa varanda a todo o comprimento, é destinado aos quartos e, de novo, a uma pequena biblioteca onde é notória a vocação do proprietário – terra e bichos. 

Cheira a madeira por todo o lado. Um aroma quente misturado com o perfume do verde.

A primeira impressão foi de receio. Havia galinhas soltas. Nunca sei quando estas criaturas desatam a correr para nos ferrar. Senti-me mais segura no interior da casa, embora tenha tinha a sensação de ter visto, a um canto mais sombrio, o Mário Soares vestido de senhora idosa. Fui apresentada àquela que, não fosse o bigode, poderia perfeitamente ir visitar Évora e desatar aos gritos que a TVI não perceberia o engano. Todos os dias trata da casa e das refeições do meu anfitrião. Não vai demorar, que é Domingo e tem a família à espera. Demos graças.

O homem guiou-me até ao meu quarto, porque o meu quarto não seria o dele.

Felizmente a surpresa que tive de engolir foi tamanha que esmagou a galdéria que há dentro de mim sempre aos pinotes.

Almoçamos sobre uma mesa de madeira envelhecida. Rojões à moda do Minho e vinho maduro alentejano – o único que me agrada. Não é o meu prato favorito, porque existe a farinheira. Aproximar-me de uma farinheira é como sentir a crueldade fisiológica de todos os perfumistas do universo, mas Lena Horne ambientou o momento.

A tarde foi destinada às vacas e a dois bois do tamanho da Cordilheira dos Andes. Insisti em acompanhar o homem nos seus afazeres bucólicos. Calcei as galochas que me ofereceu ao mesmo tempo que calçava a perplexidade. Intrigante o facto deste matulão ter umas galochinhas pequeninas de reserva, mesmo ali ao lado dos brutamontes que usa nos pés...   

Enfiar-me na lama e demais resíduos não é propriamente o sonho de Paris, mas como diria a população sofre Rita se queres se bonita. Esta Rita sofreu imenso e ao fim do dia estava esbardalhada de cansaço e a rogar por uma cama. Não necessariamente a dele, o que é a prova cabal da minha exaustão.

Do alto das escadas espreitei aquele gigante magnífico, sentado à secretária, misturado com papéis, debruçado sobre o abismo dos números e entendi de imediato porque é que as horas que passei com ele tinham o perfume das especiarias.

Hoje de manhãzinha havia compotas sobre a mesa. Queijo e leite frescos, manteiga, um ramo de alecrim, açúcar, doce de laranja e pão que ele tinha acabado de fazer.  

Hoje, beijei-o.