10.12.21

A Gaffe melómana


Foi-me entregue pelo meu avô, como o choro mais belo do universo, O Lamento de Dido, em Dido e Eneias de Purcell.

Segredou-me ao som deste lamento:

Nunca tentes domar a Tristeza atravessando-a com uma luz imperfeita. Deixa que a Tristeza se canse até que a luz que traz, quebre por dentro.

A minha vida não tem banda sonora de grande contemporaneidade.

Creio que foi ocupada pelas obras que o meu queridíssimo melómano me foi fazendo compreender.

Mas são outras as notas da memória que voltam desta vez. Aproximam-se voando como minúsculas folhas de papel desenhado que vou colando à toa, sem qualquer critério. Nunca fui uma boa coleccionadora. As estampas da minha infância foram todas resguardadas, mas não sei catalogar tudo o que encontro cá dentro, e contudo é vivo na minha alma e no centro da minha vida o soar de Dvoräk. Lembro-me que o meu avô como que orava através do Stabat Mater num ritual quase pagão que envolvia penumbras e luminárias e que, contagiadas, as empregadas se benziam estarrecidas. De mãos cerradas, a boca crispada e os olhos como facas cravadas no tempo, fazia erguer os abismos e as ascensões, os turbilhões e as fúrias, o negro desenfreado e a claridade imensurável. Os coros apunhalavam e eu, minúscula, sentia que cedo ou tarde o meu corpo cederia ao medo do troar do Quando Corpus Morietur que o meu avô fazia repetir incessantemente. Imobilizava-me, onde quer que estivesse, ao soar o primeiro acorde e esperava que o coração sossegasse o galope, que as agulhas no meu corpo deixassem  de ferir, que o medo de não conseguir respirar abrandasse ou que a morte viesse e me lancetasse de vez. O meu avô forçava-se a ser levada até Deus através daquele envolvimento poderoso. Caminhava desse modo, erguido pelos acordes do Stabat Mater e deparava com Deus vestida de coros. O seu modo de chorar era este e alastrava pela casa fora até tocar o espaço das mimosas e das suspensas beladonas encerradas que continuavam a verter o aroma sobre mim.

Ainda o ouço.


Mas não é desta memória que quero falar.

Dizia-me o meu avô que o passar do tempo se incumbia de carregar de sons as obras dos génios. Purcell é menos sonoro que Albioni, Bach é mais discreto do que Händel, Rosetti é menos trovejante do que Mozart e este menos brutal que Beethoven, Hoffmanm mais frágil do que Berlioz, Schumann mais frágil do que Debussy, ou Bartók menos duro que Shostakovich. Mentia-me, sorrindo, à espera que o contradissesse. Misturava períodos e tempos, obras inteiras e pequenos excertos, sempre a aguardar que detectasse o propositado erro nesta hipotética procura de calar o silêncio, preenchendo-o de sons e de fúrias, sabendo que o tempo que avança não procura a exclusão do silêncio, pois que é o silêncio que avança a retroceder o tempo.

Aprendi nesses instantes, que a Tristeza não se cala com tempos imperfeitos. Cansa-se apenas com os sons que quebram em nós a luz que traz por dentro.