Gil Elvgren |
A rapariga desditosa, pobre e perseguida pela mofina, tenta a todo o custo transcender a miséria a que foi votada pela triste sina e, qual açucena virginal, romper o lamaçal para onde foi lançada pela triste vida repleta de pais pobres e de irmãos desempregados.
Apela à solidariedade, a bondade, a compreensão e à carteira, quer dos seus leitores, quer de contactos avulsos que vai intimando. O sonho cerceado de continuar o seu percurso académico e o seu desejo de ser publicada, fazem-na esquecer que usa, por distracção ou por cansaço – evidentemente – um corrector ortográfico que foi agente do KGB e que continua predisposto a destruir a ortografia portuguesa e que Londres, local que escolheu para fugir à miséria dos que lhe recusaram a tão urgente bolsa de estudo, não está propriamente uma coisita barata.
A festarola começa.
Multiplicam-se os incêndios nas redes sociais, as palmas e os incentivos, replicam-se posts, publicam-se apelos no facebook. Há exortações e hinos pelo ar que reconhecem o mérito de quem sofre tragédias que ninguém compreende a não ser vivendo, há o sonho que não se pode perder, a luta que se deve travar, a vitória dos perseverantes, há a acesa condenação de quem se atreve a duvidar de tão elevada e gloriosa atitude. Há mesmo quem lhe dê conselhos de carácter literário, não querendo perceber que jamais a pequena leu um livro. Há que arrancar a vítima das garras da má sorte. Há que vestir a farda dos bombeiros.
Há um festival de bandeiras, uma quermesse da tupperware.
Descobre-se por fim que a angélica heroína é uma vigaristazita que montou há três anos um esquemazito foleiro de angariação de fundos à pala dos agentes da passiva. Vai criando e apagando blogs com lamentos diferentes, mas objectivos iguais. Já teve pé boto, os pais entrevados, já esteve doente, já foi preterida por não ser bonita, já foi marginalizada e sofreu sevícias e tudo o que mais se quiser, porque foi de tudo, desde que este tudo permitisse seleccionar por fotografia as tralhas da solidariedade.
Esta predisposição para se ser vigarizado através deste esquema, primário, tosco e mais do que evidente, é mais comum do que se pode pensar e tem raiz, não na credulidade, na falta de juízo ou na cegueira selectiva dos que nele tombam, mas nas suas vaidadezinhas e no irresistível apelo do brilho das montras deste simulacro de solidariedade feita de distância e de facilidade.
É banal, perante a fotografia da menina pobre ou do rapazinho soterrado ou aterrado, trágica porque isso nos dizem de modo subliminar ou não, criar ondas de choque alapando o rabo gordo da indignação e da revolta no banquinho ou na poltrona onde se levantam imagens de grandes comoções.
A comoção não ergue bandeiras solidárias em nome do que está distante. A consciência de longínquas tragédias apenas desperta uma cómoda solidariedade, uma interdependência de poltrona que vai sussurrando ao ouvido a beleza de sermos tão bondosos. Ninguém se comove realmente com um comando na mão e o que está escrito na fotografia da tragédia é o desenho das lágrimas que se querem ver. Narram as histórias que se querem vistas, antes mesmo de as podermos visualizar. Embrulham-nos as comoções que se desejam sentir para de rabiosque alapado se despejem textos solidários repletos de incendiadas e escandalizadas bandeiras de papel.
A Comoção exige a nossa presença.
Exige as nossas mãos na lama, os nossos olhos na ferida e a alma trágica a sentir a nossa impotência e o desespero a tentar acreditar que não pertencemos ao lugar que dói, que presencialmente dói, e que dele queremos fugir em aflição, sabendo que é exactamente por o querermos recusar que percebemos que só a ele pertencemos.