13.12.21

A Gaffe com duas avós

Tinha olhos que lembravam um País arrancado ao mar e a fragilidade insuspeita da tulipa. Tinha esguios dedos sem anéis e um colar de pérolas eterno que enrolava nos dedos. Tinha a benevolente paciência dos ouvintes ternos e a doçura das palavras certas ditas baixinho para não doer. Tinha cabelos de seda apanhados na nuca por travessões de tartaruga e usava calças cigarette, blusas de gola alta que a alongavam e a transformavam em cisne ou em espiga de trigo. Tinha a voz dos meigos, aquela voz que é bom ouvir quando troveja, e um sorriso de lua a crescer numa noite de Verão.
A minha avó materna.


Tinha olhos avelã e espertos, ladinos, marotos. Usava Chanel à toa - excepto o n.º 5 que considerava le parfum des femmes ordinaires -, misturando tudo por não ter paciência para combinar. Usava adereços gigantes e tinha um anel com um rubi espalhafatoso como o planeta Marte. Tinha o cabelo branco, com ondas e quebras, sempre em desalinho e blusas com folhos para não contrastar. Era bem mais pequena, mas era mais arisca. Tinha perdido a paciência pelo mundo fora e cortava as conversas sem dó nem piedade, fazendo ficar discursos a meio. Enganava-se em tudo, disfarçava depois espetando farpas em palavras soltas que surgiam incautas na boca dos outros. Tinha um sorriso aberto de lua a pairar nas noites de Verão.

A minha avó paterna.


As duas amigas. Cúmplices perfeitas. Chegavam, braços dados, à Ceia de Natal da família toda.

Devagar, as duas disfarçando o tédio, sentavam-me no meio dos perfumes díspares que teimavam usar.
- Viemos ter consigo. Aqui a menina é a única coisinha a funcionar.
As minhas Avós.

Neste Natal voltam a não estar comigo e no entanto esta casa terá sempre o Natal perfumado pela maravilha da memória delas.