6.1.22

A Gaffe na montanha-russa

06/01/2019

Kurt Hutton

Esvoaçam folhas e pauzinhos. Rodopiam esbaforidas as sebes pelo ar. Abrem-se vendavais no pátio levantando pedras. Correm e voam esgrouviados pássaros depenados e histéricos. Os cães ao longe uivam doridos adivinhando perigo e as portas batem assoladas. Desarranjam-se as simetrias do jardim e as águas turvam-se confusas ensandecendo os peixes que se afogam. Enlouquecem as nuvens, remoinhos, tufões e corrupios, roda-viva, ciclones e tornados e torvelinhos de montanha-russa.

Atira a multidão de caracóis para trás. Sopra naquele que teima em resistir. Perfume a vaguear pelos espaços. Bâton esboroado. Dior esfarrapado. Carteira pelo ar. Pernas trancadas por tacões agulha e olhos cobertos por negros óculos, verdes, negros, negros e inúteis.

- Quero álcool! Quero beber qualquer coisa que mate!

Inclina-se e desaba no sofá. Pé nu, sapato projectado no corredor imenso.

- Perdi-me outra vez. Apanhei com um camionista a buzinar atrás de mim, como se eu fosse gorda! Demorei quatro horas a chegar aqui aos solavancos! Parei numa tasca para perguntar onde porcaria estava eu e fui quase violada por um homem de bigode! Não fiz xixi porque tive medo de ser atacada por esquilos ou desaparecer num buraco qualquer no meio das ervas! Há árvores por todo o lado! Não há semáforos nem sinalética! As couves batem no tejadilho do carro e aquelas coisas das hortas estão vivas! Fui perseguida por uma galinha aos urros e acabei de calcar bosta de vaca!

- São hortênsias.

- Quem?

- As couves que bateram no carro, são hortênsias. Abriste o portão, calcaste piso enlameado, e entraste por onde não devem, nem podem, passar carros. A galinha que te urrou provavelmente foi um ganso. São agressivos e muito territoriais. As coisas das hortas são buchos e não há vacas no meio do jardim.

- Não via aquela galinha há muito tempo. Pensei que podia ter crescido.  E os solavancos, mademoiselle Holmes?! Tive medo de cegar sempre que as mamas me batiam nos olhos quando apanhava poços de ar.

- Não devias ter entrado pelo portão lateral. Sabes tão bem como eu que está vedado aos carros.

- Meu amor, a tua irmã é uma homicida. Teve um surto psicótico quando decidiu bloquear o caminho mais curto para entrar neste mausoléu. Foram quatro horas! Quatro horas até conseguir ver casas ao longe! O Douro aumentou?! Se aqui chegasse e fosse obrigada a andar às voltas mais um minuto, só porque a tua mana acha que sim, que é mais lindo e, ai, que bem que fica, juro-te que não encontravam ninguém vivo. Desesperada, sou como o tarado da Coreia, mas em alto. Engordo ou mato.   

- Oh, tens de admitir que é mais lógica esta organização do espaço. É fácil e habituamo-nos depressa.

-  Também é mais lógico ser sempre eu encarregada pela tua maninha de te arrancar daqui. Jurei-lhe que conseguia, mas descansa. É fácil mandar a tua irmã à merda. Habituamo-nos depressa. Por mim podes apodrecer enfiada no meio do mato.  

Se nos sentarmos muito quietos, se tivermos um copo com água por perto, se mantivermos a tranquilidade, a calma e uma atitude bucólica, romântica, cor-de-rosa, repleta de unicórnios e laços de cetim, conseguimos ser absorvidos pela maravilha da descoberta desta mulher estupenda. Nada, rigorosamente nada, é tão genuíno, tão real, tão isento de farsa, tão pouco fantasioso ou disfarçado, como esta histriónica criatura extraordinária. É fascinante olhar o seu poderoso egoísmo, as suas inabaláveis certezas, o seu ego desmesurado e a sua capacidade de embalar estes terrores no maior encanto e sedução que nos deixam rendidos e que nos fazem aceitar o temporal, como se a tempestade ocorresse apenas no copo com água que temos por perto.      

- Tragam-me álcool ou cravo o tacão que me resta no meio das vossas pernas.


A minha prima chegou, desta vez até muito pacífica, ao meu pobre Douro.