6.1.22

A Gaffe no início do frio


Daqui vejo o corredor das árvores. São gigantescas e provocam a sensação de que, cedo ou tarde, nos vamos perder no chão, iguais às folhas que quebraram com ferrugem ou incêndios com sede.

Afasto-me dos outros como se fosse urgente passear calada, como se tivessem emudecido todos estes ventos que dançavam sobre as telhas e faziam oscilar os velhos anjos das fontes.

Começa a fazer frio.

Sento-me no banco de pedra e tento ouvir os sons que sempre me foram estrangeiros. O frio tem um som também. Não o sei definir, mas agora sei que o ouço. É uma mistura de fio de água a correr e de gargalhadas de fantasmas.
Disseram-me que aqui ninguém morre. Que as pedras prendem aqueles que se perdem e que quando as pisamos sentimos o latejar dos corações que foram. Disse-mo o meu avô que a ele lho disseram, mas eu não acredito, porque estou sentada numa pedra e o fantasma está na minha frente, que me vejo longe de mim, ali ao fundo e não na pedra onde me sento. Talvez se confunda o frio das tardes e das noites com o latejar dos corações dos mortos.
Todas as tardes em que me sento neste banco, o velho Domingos vinha sentar-se comigo. Perguntei-lhe um dia se alguma vez tinha visto um fantasma. Respondeu que não e ficou a olhar as mãos que eram raízes.
 
(Sentou-se comigo no banco frio de pedra, ao fim de uma tarde qualquer. Havia árvores a amarelecer por todo o lado e o vento fraco continuava a embalar os anjos.
- A menina é boa pessoa.)

As árvores estão amarelas e soltam a poeira das folhas embrulhadas no vento, mas eu sou boa pessoa. Tudo era tão simples, quando tinha o Domingos perto de mim, sentado no início do frio do Inverno a olhar para as mãos que são as raízes das árvores amarelas.

Ao fundo do corredor passa uma mulher sem olhar para as mãos que são as minhas e deixo de saber se estou sentada ou se a mulher que passa sem olhar é o que eu sou a andar por entre as árvores.
 
A cadela brincava com as folhas e com o restolhar do tempo.
O Domingos levantava-se. Esfregava as mãos que eram raízes e atravessava o caminho com árvores amarelas.

Ao fundo do corredor de folhas mortas, a mulher desaparece e eu, sentada no banco de pedra, vejo-me esbater ao lado dela e começo a fazer frio.