21.2.22

A Gaffe santificada


A Mélinha, zelosa encarregada do bar e dos cafés que no início da manhã são distribuídos, pertence nas horas vagas ao grupo sinistro das senhoras que vigiam as urgências dos Hospitais, catando as mais escabrosas maleitas, os mais tenebrosos acidentes e as mais diabólicas ocorrências.

O facto de também morar praticamente em cima do Hospital, permite-lhe uma atenção peculiar e mais aguçada do que aquela que as suas congéneres não conseguem dispensar de forma contínua e mais atempada.
Entre benzeduras e suores frios, entre boca aberta e olhos arregalados, a Mélinha chega e entre a palidez e a vontade que a sufoca de despejar sobre todos o que sabe, vai servindo os cafés suspirados e trémulos.
Inevitavelmente alguém questiona os murmúrios da senhora que, sem se fazer rogar e entre uma oração escandalizada, expulsa o que os seus olhos viram abertos pelo choque e incredulidade na madrugada de ontem.

Ocorreu à urgência, de ambulância com as velas pandas, uma jovem mulher de cerca de trinta anos, com um objecto absolutamente imprevisível preso no sexo.
Nada que perturbasse a nossa valente mulher dos cafés. Tinha assistido, ’indera muossa, a situações idênticas. Lembrava-se do caso interessante em que uma garrafa de Coca-Cola se tinha recusado a ser desalojada de igual lugar, justificando assim o slogan Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

O que realmente a arrepiava era um facto simples: o objecto estranho preso na moçoila, era nada mais do que uma Nossa Senhora de Fátima, de plástico, com cerca de vinte cm e já sem coroa, como se imagina – embora custe.

A rapariga no meio do escuro, pela noite dentro, solitária e triste, decide alegrar as horas que nunca mais passam e tacteando cega em busca de maior conforto, teria confundido texturas, formas e sobretudo objectivos.
Pode ser também que, católica muito fervorosa, quisesse criar uma ligação mais íntima com a Santa, fazendo-a chegar à alma por caminhos mais ínvios e esperando depois que lhe batesse palmas.
Habituada a aparecer e a desaparecer em lugares esconsos, enfiada em grutas e empoleirada em árvores, espanta-me que a Santa tenha reagido mal, recusando ser desalojada.

As meninas que por aqui saltam, pincharam do bar, num abrir e fechar de olhos ou, mais apropriadamente, enquanto a Santa esfrega um olho e, num afã inusual, correram ansiosas para os gabinetes, quem sabe se resfolegando de alívio, descobrindo que as suas versões de santos metediços ainda se encontravam nos sítios do costume.

Resta orar para que o Papa ignore está magnífica oportunidade de negócio, porque, de contrário, teremos aberta, mais cedo ou mais tarde, a ermida roliça da trintona santificada e uma romaria imensa de fiéis de vela na mão a cantar Hossanas à moçoila benta.

A Mélinha, entretanto, já se recompôs.