7.4.22

A Gaffe do assassino


O assassino chegou em contraluz.

Espapaçada na poltrona vislumbro a silhueta da faca.
Aproxima-se devagar. Gosto de assassinos tímidos. Dão-nos sempre a oportunidade de lhes medirmos as armas.
Moreno, de ombros larguíssimos, braços de embondeiro e olhos escuros, tronco de ferro e pernas de aço, o facínora avança.
- A senhora mandou-me aqui para matar a galinha para o jantar.
Não se devem matar coisas nos locais onde as pessoas descansam esparramadas nas poltronas!
 
Que não era ali. Que só vinha perguntar se o podia fazer na cozinha.
Olhei de novo. Claro que ele O podia fazer em qualquer lado! A facas daquelas nada se recusa e nunca se diz não a um bom massacre em cima dos balcões de uma cozinha. O sabor dos molhos é sempre mais picante e o travo do sal sempre mais doce.
 
Acompanho-o. Quando não há nada para fazer facilmente nos tornamos cúmplices de assassinos jovens e másculos, com facas grandes e agressivas.
Observo-o. Ele curvado, eu a espiar.
As clavículas desenham um suave escorrega, onde deve ser bom deslizar até chegar ao côncavo que fazem ao encontrar o esterno.
As mãos são grossas, com os dedos duros e penugem fina.
Tem braços grandes e potentes e movem-se músculos quando ele se move. Crescem no antebraço pêlos negros penteados que prometem outros por domar.
Olha para mim e sorri. Tem rugazinhas ao canto dos olhos e boca carnuda como uvas maduras que estalam e espalham sucos doces quando as mordemos.
Toco-lhe no braço e sinto-lhe a carne quente. Simpática, pergunto se quer a minha ajuda.
Olha e hesita. É esse cintilar de hesitação que o trai. Não é propriamente a minha ajuda que ele quer, mas sente que a marotice que uma rapariga esperta sabe insinuar pode ser a morte do artista.
 
É a galinha que quebra toda a cena. De um lance só, o assassino de faca bem certeira e pulso firme, decapita a pobre.

Convulsões e sangue! Os ovos estão órfãos!

- Amanhã, se quiser, posso levá-la de moto à cidade - sugere com as mãos ensanguentadas enquanto a bicha estrebucha de garras sinistras levantadas para o céu.
- Amanhã não. Ouvi dizer que vai fazer imenso frio e ... posso constipar-me. Fica para depois.

Pois! Para depois! Para muito depois. Amanhã tenho de rezar pela pobre assassinada.

A minha irmã, depois de me ter apressado para a sala impressionada com o sucedido, pinta as unhas, de Hermès ao pescoço, perna longa traçada e olhar severo.
- Gostas da cor? Acho-a muito a propósito. É vermelho sangue-de-boi.
Há uma ligeira ironia naquele verniz sangrento.
- Não incomodes o maninho. Hoje está tudo de cortar à faca.

Há subtilezas a que decididamente não acho graça nenhuma.