Por vezes retiro às pessoas, sobretudo às que amo, os seus ruídos, os sons que emitem e as palavras que escorregam pelo instante. Olho-as sem banda sonora, dentro de filmes mudos. Apenas movimento dentro de silêncio.
É nesses momentos, muito mais frequentes do que seria conveniente, que me deslumbro.
Vejamos, por exemplo:
É nesses instantes que meço os ângulos esguios do traçar das pernas da minha irmã; estudo o gesto contido com que afasta o cabelo do rosto quando está nervosa; espio o semicerrar dos olhos quando o fumo se pendura nas pestanas; analiso a boca insolente que dispara erguida e prepotente; observo o modo como as pequenas pérolas contornam as clavículas; investigo o baloiçar do pé quando encontra obstáculos e percorro os terríveis dedos a desenhar espaços.
É nesses instantes que pasmo com o inclinar da cabeça do meu irmão quando enfrenta a música; que marco e revejo o retesar dos músculos sempre que ondula o som do saxofone; que sorvo e absorvo a densidade dos seus olhos sempre que por eles passa a melodia.
É nesses instantes que apanho o escarlate do sorrir da minha prima; o mover de gato bravo do seu corpo; o espampanante explodir de todos os seus gestos; a fragilidade tonta com que atira a cabeça para trás quando se espanta; o atento olhar de caçadora esperta que sabe que a presa é sempre uma quimera.
É nesses momentos que encaro a imobilidade dos que amo e avalio a contenção do gesto e o pacífico alvéolo onde se escondem e adormecem.
Por isso não retenho Música. Não a sei. Não me apaixona.
Sempre foi assim. Retiro sons ao mundo para que o mundo me entregue o silêncio burilado da obra de arte.
Há, no entanto, o timbre que desliza e para o interior desta solidão quase autista e que mistura o espaço de silêncio entre as notas com a fragilidade dos sons, provocando e desenhando universos quase quebradiços, quase vidro, quase adormecer na imobilidade das superfícies dos outros.
São timbres quase sempre abrigados no piano e que me deixam apenas a ouvir, sem palavras ou gestos reconhecíveis.
É o caso do piano de Fernando Dinis.
É provável que o silêncio ecoe desta forma.