Jean-François Segura |
A propósito do passado dia 05 de Maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, e dos rasgões nas vestes dos escandalizados com a degradação, a contaminação e a corrosão deste património, a Gaffe decidiu achar parola a indignação dos mais que muitos.
Este eterno complexo de inferioridade português inflama-se e incendeia as hostes patriotas, de forma tão medíocre e patega, sempre que alguém estica um fósforo de um dislate, um desconchavo de um pirolito, ou sopra à toa uma laracha mais ou menos exibicionista, ou mais ou menos provocadora, que revolve o quintal à beira-mar.
A Gaffe lembra-se do dia tenebroso em que António Lobo Antunes lamentou que Portugal e Espanha não fossem o mesmo país.
A Gaffe culpa a Catalunha de 1640 pelo desgosto de Lobo Antunes. Não fosse a barulheira catalã - uma piolhice! - que estourou nos excelsos dedos de Filipe IV, Sua Majestade não teria de optar entre a região mais rica e a mais pindérica do reino. Atirou-se à primeira, pois que um rei não tem só a coroa para compor o outfit e os brincos, os alfinetes, as medalhas e colares já tinham deixado de crescer nas caravelas.
- Lobo Antunes é um escândalo – rasguem-se livros.
- Morte ao traidor! – aproveitam os desfesnetradores.
- Mântua para rua, que o povo continua! – ou outra maçada qualquer a rimar.
O facebook desatou aos berros, o twitter aos gritos, os blogs aos urros e a D. Teresa estrebucha histérica no túmulo - pois que tanto lhe custou arrancar o dote à unha do pai -, sem primeiro se ter a delicadeza de resguardar Letízia da poderosa onda de choque.
Se o homem queria muito que os dois países fossem um, pois que alimentasse esse desejo e dor. Não fazia grande mossa.
A Gaffe, francamente, preferia ser dinamarquesa. Ou viscondessa, vá.
Mais recentemente cai o Carmo e a Trindade durante o terramoto da laracha imbecil do primeiro-ministro que adoraria que tivéssemos o sotaque da gente do Brasil – quase fornecendo debalde e de balde que o brasileiro não é uma variante da língua portuguesa.
A Gaffe confessa: não gosta do Corcovado. Kilo grãdão di bráçu abértju. Não aprecia o clima brasileiro e sempre lhe fez muita confusão ver o colorido das eternas bermudas, com tropicais flores estampadas e vistosas, que se usam com camisolas de alças multicolores e de chinelos de plástico com uma tira de se enfiar nos dedos.
Brasília sempre lhe pareceu um gigantesco trem de cozinha pousado no chão e em Copacabana correm surpreendentemente menos deuses do que no paredão da sua atlética imaginação.
A Gaffe não gosta do modo como o Brasil fala do que veste.
O singular mata-a.
iéli trázia um sapatchinho pretcho, cum meiinhá brãnca, camisolinha cum monguinha curtcha e uã singletche cu auça linda de morrê. A caucinha táva u pouquichinhu féa, má deu p'rá disfarçá, viu?
Facilmente se descobre que o Acordo Ortográfico é uma tontice que ignora que a diferença está na pronúncia e nos vocábulos, sendo indiferente ao modo como se grafam as palavras.
A Gaffe reafirma toda portuguesa tudo isto, mas admite que as contaminações são inevitáveis, compreensíveis, previsíveis, esperadas e irreversíveis – são a evolução naturalíssima da língua que já não é o latim que foi outrora e que, sobretudo, gosta muito, muito, muito do caução do menino do Rio que madruga nos nossos Havaí e por mais que tente não deixa Caetano Veloso trautear sozinho canções que são beijos.
Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Dragão tatuado no braço
Calção corpo aberto no espaço
Coração de eterno flirt
Adoro ver-te
Menino vadio
Tensão flutuante do Rio
Eu canto p'ra Deus proteger-te
Menino do Rio
O Havaí seja aqui
Tudo o que sonhares
Todos os lugares
As ondas dos mares
Pois quando eu te vejo eu desejo o teu desejo
Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Toma esta canção como um beijo
Não é preciso Acordo para unificar a emoção.
A Língua brasileira é a portuguesa. Como então impedir que se encanastrem?!
É evidente que a proliferação de estrangeirismos, sobretudo quando existem vocábulos na língua portuguesa que definem os conceitos avocados, revela uma subserviência, uma bajulação, um servilismo muito poucos dignos e uma pateguice que não conseguimos nunca dominar, mas, meus amores, a flexibilidade oportuna da língua portuguesa, a sua mobilidade e a sua capacidade de acolher inúmeras variações, não se coaduna com débeis e diáfanas vestes rasgadas com uma violência digna de carrasco de Revolução Francesa - ou bolchevique, que esta rapariga não é esquisita.
De cocós por apanhar já anda o mundo exausto.
O que desgraça a Gaffe desgraçada é que a informem que os erros são humanos.
Apesar de concordar com o tão injustiçado Jacques de Chabannes, Monsieur de La Palice, acrescenta que se errar é humano, é também às vezes muito divertido.
No entanto, como justificação do erro, iludem-nos com os erros semânticos, morfológicos e sintácticos, que são comuns aos grandes génios da literatura universal, apanágio do cânone literário, acervo da Grande Biblioteca e comuns, banais, vulgares em cada página que folheamos, não raros em Camilo, Eça, Nobre ou Pessoa, passando por Saramago ou Agustina e lobrigando os outros com o tamanho do que avistam.
Ma aqui - e sem qualquer remoque à condição de quem assim pensa- é que a porca torce o rabo.
O que desgraça a Gaffe desgraçada é que a informem que os erros são humanos.
Apesar de concordar com o tão injustiçado Jacques de Chabannes, Monsieur de La Palice, acrescenta que se errar é humano, é também às vezes muito divertido.
No entanto, como justificação do erro, iludem-nos com os erros semânticos, morfológicos e sintácticos, que são comuns aos grandes génios da literatura universal, apanágio do cânone literário, acervo da Grande Biblioteca e comuns, banais, vulgares em cada página que folheamos, não raros em Camilo, Eça, Nobre ou Pessoa, passando por Saramago ou Agustina e lobrigando os outros com o tamanho do que avistam.
Ma aqui - e sem qualquer remoque à condição de quem assim pensa- é que a porca torce o rabo.
É evidente que toda a gente sabe que os manuscritos de Pessoa estão pejados de erros ortográficos, que existem incongruências na obra de Agustina, que Saramago desobedece a normas gramaticais, ou que Lindley Cintra tem uma apoplexia na frente dos erros de Lobo Antunes e de outros tantos génios literários.
O que os distingue é exactamente esta última palavrita. A genialidade. Os autores referidos - e outros que se omitem por preguiça -, usam as palavras usadas, gastas, velhas, carcomidas, quotidianas, banais e corriqueiras, na construção de frases nunca ouvidas, nunca lidas, maravilhando-nos com a força descomunal com que conseguem mudar-nos a vida. Operam milagres com a palavra. A arrogância, a teimosia, a inflexibilidade do ne varietur, a displicência com que o erro é acolhido, a insolência com que brindam a falha cometida, o desprezo com que embebem toda a correcção, são diluídos pelo demonstrado e comprovado conhecimento profundo da língua, das suas potencialidades semânticas, do seu acervo vocabular, das suas produções passadas e sobretudo da consciência da grandeza da obra que nos entregam. Não deixam de ser erros, não deixam de ser desvios ou transgressões à norma gramatical em vigor, mas, nestes casos, para lá da língua, existem constelações, galáxias, universos inteiros de personagens, de espaços, de tempos e de acções que de tão densos e incontáveis e perfeitos lhes entregam a possibilidade de ruptura com a regra e que nos exigem a humildade de nos calarmos perante o que não sabemos.
As opções linguísticas, as voluntárias escolhas de fonemas e de grafemas, as infracções às regras, ou as transgressões metalinguísticas ou paralinguísticas destes génios, não nos permitem a ousadia e a falta de vergonha de nos ilibarmos dos erros que vamos grafando, não nos justificam as calinadas, não nos autorizam a espalhar cocós naquilo que tentamos rabiscar. Não nos ilibam. Não nos abrigam.
Sei que provavelmente a Gaffe irá causar um desgosto imenso a todo o planeta, mas sente-se na obrigação de dizer que não soéu perfeita.
Dá erros.
Comprova-o, para acalmar os que duvidam:
Uma mulher qualquer, há tempos que já lá vão, num blog entretanto falecido, transcreveu na integra um rabisco assinalando a vermelho - como mandam as regras do bom mestre-escola -, os erros que esta rapariga tinha cometido.
Apesar de não consubstanciarem descalabros, pois que se relacionavam com concordâncias mal efectuadas – do rapariga, ou do estações -, não deixavam de ser erros. Humildemente, pacatamente, envergonhadamente, a Gaffe corrigiu. Não teve a coragem e a hombridade de apagar o post, mas temeu pela sua sanidade intelectual e corou de embaraço. Não se justificou com a sombra da ilusão patética de ser livre de amarras como Saramago, ou de ter o privilégio de adaptar grafias como Lobo Antunes. A Gaffe tem consciência da sua irrisória pequenez e sabe, com a certeza da morte, que é vil e mesquinho o que vai debitando, unindo palavras. Não teve a desvergonha imbecil de se aproximar dos pés dos génios, clamando e reivindicando a liberdade criativa, a disrrupção linguística, a transgressão ortográfica, que os seus desmesurados talentos ousam permitir.
A Gaffe, no Dia Mundial da Língua Portuguesa que se esqueceu de festejar, ou nos restos dos dias em que é portuguesa também, sempre considerou conveniente limitarmo-nos a cuidar com desvelo e atenção, o melhor que soubermos, do quintalzito que nos coube em sorte, porque declarar - do alto de um post muito baixinho - que os nossos erros ortográficos se abrigam debaixo do mesmo telhado daquela liberdade que é apanágio da genialidade literária, é o mesmo que ter um burrito a zurrar até ensurdecer, apenas porque ouviu nas torres do palácio, no meio das orquestras, um Dó menor a mais.
Depois, meus amores, o Memorial do Convento não é um post e a Língua Portuguesa já não é um quintalzinho à beira-mar plantado.