1.9.24

A Gaffe de farda


É perturbadora a fascinação que sentimos por fardas!

Não excluo os homens deste imenso grupo deslumbrado. Uma rapariga esperta não esquece as Influentes armas que lhe chegam às mãos num uniforme de enfermeira, mais ou menos picante - farda e moçoila -, ou quando se mascara de ingénua colegial pronta a ilustrar Nabokov, ou quando a comissária de bordo agita os braços enfarpelados espargindo perfume pelas indicações de voo, ou ainda quando decide que tem todo o direito de desatar a miar, numa aproximação caseira a Michelle Pfeiffer na sua inesquecível Cat Woman.

Toda a segurança é abalada quando uma farda se atravessa no caminho.

Implorando o perdão dos mais sensíveis, não é descabido, sem sentido, absurdo e tonto, referir os mais belos uniformes de todos os tempos, os do III Reich, contribuíram de forma subliminar para a submissão completa de uma população a aniquilar. O poder que destas fardas emanava domínio, a negra beleza dos cortes perfeitos e a imposição tirânica e titânica da sua imensa fascinação sinistra, colaboraram no esmagamento da vontade de reagir ao Terror.

Os uniformes provocam - muitas vezes numa mistura impressionante com o medo e outras tantas com a agressividade, o desejo, o deslumbre -, a sedutora, embora submissa neste caso, atracção pelo domínio e pelo poder, seja ele de que espécie for.

Somos frágeis. A insegurança corre-nos nas veias, mesmo quando não sentimos o seu latejar. Creio que a necessidade de protecção, de abrigo, de asilo, de resguardo ou de refúgio, provoca a necessidade de obediência subtil, e tantas vezes fatal, aos que vestem o símbolo mais visível de poder e de força.

Estamos inconsciente e perenemente perdidos e é nos signos que encarnam a potência e o domínio que procuramos a indicação da rota a percorrer.
Trágico é quando, nesta atracção, encontramos o abismo. Neste caso, para o atravessar é precisa a nudez.

Tudo isto se desenrola, apenas porque temos de assumir, raparigas, que nos babamos.


Babamo-nos quando vislumbramos desprevenidas uma farda ou uniforme capaz de nos fazer crer que o rabinho do dono saiu de um expositor do MET; quando adivinhamos dois peitorais de aço a rebentar a camisa; quando deparamos com duas colunas musculadas enfiadas em botas de couro polido; quando sofremos por não poder fazer deslizar os dedos pelo cabelo rente de quem nos faz parar o carro ou de quem nos mostra a arma inacessível e quando imaginamos cenários de guerra e de guerrilha, internas e aconchegadas, protagonizados por um destes rabinhos fardados, que fazem ruborizar Belzebu, já que os outros e celestiais arcanjos tremem de pavor perante estas quedas iminentes.

Babamo-nos e só não esbugalhamos os olhos porque, não sendo o rímel YSL, receamos que as pestanas se nos colem à testa.

Dizem as más-línguas que o apelo erótico que nos abrasa quando vislumbramos um uniforme bem vestido, equivale ao que a visão de Irina Shaik em lingerie provoca no masculino olhar.

A Gaffe não subscreve.

Uma farda bem vestida inflaciona a reserva erótica do portador e, no caso dos soutiens, é geralmente o seu conteúdo que favorece o rendilhado.

Mas o facto de salivarmos perante estas visões enfarpeladas, não pode implicar descuidos no terreno.
O episódio estrelado pela Gaffe ilustra cabalmente o que foi dito.

Perante o deslumbrante polícia de trânsito, a Gaffe decide sair do carro para solicitar a informação, pormenorizada em papel couché, que traz na carteira ao lado do bâton - há estratégias de abordagem que se tornaram clássicas.

Vai babada e não segura.

O fabuloso animal fardado de quem se aproxima sorve-lhe toda a atenção e povoa-lhe os mais esconsos pensamentos, toldando-lhe o raciocínio com imagens pouco dignas de uma menina de boas famílias. A Gaffe usa todas as artimanhas que possui - e possui várias -, retiradas do arquivo Seduzir Fardamentos, lamentando, mais uma vez a porcaria do calor que a impede de ter uma brutal cabeleira esvoaçante e estonteante, repleta de caracóis possíveis de espargir pelo espaço e capazes de enredar a resistência. Está tudo mole!

Vai de sorriso armado e ondulante, pestana a saltitar e pezinho leve.

Tropeça.

Tropeça miseravelmente.

Esbraceja estropiada de tacão partido, esvoaça deformada, estrebucha já estragada e desaba aos pés da cobiçada figura bem fardada. Nem sequer fica de joelhos, posição mais aceitável e compreensível, dado o contexto de uniforme. Estatela-se com as pestanas cravadas na biqueira da bota do portento, absolutamente humilhada por não ter sido premeditado o tombo - com destino aos braços do rapaz -, mas apenas produto do encontro deplorável com a porcaria de uma pedra solta no meio caminho.

É evidente que depois de uma catástrofe destas, uma rapariga deseja somente e com a ardência dos joelhos esfolados, a cela de um convento.

Há, como fica demonstrado, a urgência de aliar a baba a uma atenção acrescida às agruras de um pedaço de mau caminho.

Nota - O homenzarrão consumiu imenso tempo a apanhar o conteúdo da minha carteira espalhado por todo o lado e perdeu toda a carga erótica quando comparou a dispersão dos meus parcos haveres a um desastre de avião.