22.9.24

A Gaffe metamorfoseada


Com um bom gosto incontornável, a minha irmã tem a tenebrosa tendência para aproximar as gentes das imagens que delas recria e que tem a certeza são as certas. Por essa razão, é perigoso soltar a inocente frase que nos condena ao suplício:

- Ajudas-me a escolher?

O inocente é então domado por completo. Resiste armado até aos dentes com sucessivos NÃOOOOO! ou sofre metamorfoses impensáveis. Não há outra saída.

Depois é só esperar. Às vezes dá erro e diverte imenso.

Tenho o prazer raro de assistir a mudanças, reformas, mutações e reviravoltas diversas.
Atingem inocentes que, na mais perfeitas das canduras, permitem que a minha irmã opine e deixam que ela escolha o que, segundo diz, lhes pertence desde sempre e, caso haja hesitações, caso se atrevam a apontar timidamente uma ou outra banalidade de que gostam, ouvem silvar a seta disparada:

- Não! É engano teu. Eu SEI que tu não gostas.

O caso do meu irmão é paradigma.
O pobre homem é um gigante meigo e manso, dócil e maleável nas mãos certas ou naquelas que manobram com sucesso e desde sempre nas mais ínvias estradas desta vida.
A minha irmã de dedos longos de ave de rapina ou bisturi, vestido escarlate e olhos pardos, predadores, prende e segura, domina e avassala, as escolhas do colosso antes que o colosso escape sem a ouvir, para longe daqui
Então foi vê-lo, inadaptado e pasmado, com ar perdido e resignado.

- Trocar de botas. Longe, muito longe as já cansadas botifarras sujas.
- Calças? Oh!, mas nem sonhar com essas, castanhas sem pingo de charme, com um ar de cavalheiro antigo.
- Blusões de malha bem grossa? Eventualmente serão os permitidos. Se não houver tranças ou risco azul-escuro ou decote em V. Mas tens de usar mais lenços! Adereços! Cores!
- Nada de camisas lassas como velas.
- Nada de terra na cor ou na mancha. É urgente colorir-te.
- Cinto renovado que o velho está gasto e, pasme o planeta, tem nódoas no couro.
- Blazer novo? Pois sim. Mas não de espinha, não um beje claro, mesclado de cinza. Tens de usar mais cor!

Conformado e zonzo, perdido e espantado, mas já galhofeiro, o meu pobre irmão, colorido Gatsby, personagem solta e a tocar o tonto, dentro dos vinhedos, desgarrado e perto das raízes, no outro lado do paraíso, terno como a noite.

Já perto do fim, murmura-me ao ouvido:

- Não ligues. Deixa-a divertir-se. Eu no avião troco de roupa.