15.11.24

A Gaffe de fugida


Em Paris, volto a ser o que sempre fui. Uma revolta ruiva.

Desejam-me mais velha e mais madura. Dizem-me alguns com os olhos doces, estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse quando mo dizem.
Procuram, tenazes, o meu lugar correcto, fixo, imutável. Esquecem que desconheço o Norte, que nunca fui capaz de o apontar certeira, que dentro já sou nómada e que perdi os rumos, as rotas e as sedas, que nunca fui capaz de erguer sozinha as telhas nos desertos.

Desejam-me o que são.
Eu cruzo os braços, lassos e cheios de ironias e cansaços e talvez vá por ali.

A indiferença poderá toldar-me os passos. Serei velha burguesa, parisiense e snob, embutida em spleen queirosiano, com tigres aos pés, mas só osde Blake e o de Borges, e com a alma escurecida de uma Woolf.

Então a minha casa será no Père-Lachaise.

Fotografia - Ernst Haas - Paris desde Notre Dame, 1955

14.11.24

A Gaffe vaporosa


Embora actualmente de forma pouco segura e muito mais flexível, as rendas, os bordados e os padrões florais ou floridos, foram durante demasiado tempo apanágio do feminino.
Este facto deu uma enorme vantagem às mulheres que se apoderaram com convicção das potencialidades deste universo vaporoso e frágil, armadilhando-o e fornecendo-lhe uma conotação erótica que é, em última análise, proveniente da ausência que passa a obrigatória destes elementos no círculo de uma masculinidade empedernida que se vê deslumbrada e desperta pelo sussurrar destes tecidos.

O astuto, cuidadoso, engenhoso, e muitas vezes inquietante, uso feminino das rendas e dos padrões florais, opera maravilhas no subconsciente dos incautos rapazes que presos nas redes, teias e flora dos tecidos, acabam por sucumbir ao fascínio do que lhes é interdito.
A proibição, aqui como na esmagadora maioria dos casos, incute e impele o desejo de transgressão e é agradabilíssimo sentirmos que no esvoaçar do pano se liberta a sombra do pecado e o subtil fascínio da irresistível feminilidade.

Mas - convém não esquecer -, a lua tem uma face mais obscura e trágico é quando este miraculoso encantamento de rendas e bordados a preceito, se traduz na visão catastrófica do nosso rapagão a desfilar pela brisa da nossa intimidade usando, balanceado, as nossas artimanhas.

A Gaffe gregária


Às vezes lamento a solidão.

Na essência de qualquer vida subjaz o desejo de partilha, de contraponto ou de contraditório.
Raros são os que vivem indiferentes à possibilidade de repartir com outros até o que é escrito depois de pensado.
Somos bichinhos gregários e, mesmo através de um teclado, ousamos querer dividir, somar, multiplicar, deixando a subtracção como manobra escusada.
Às vezes sinto que o pó das asas que não tenho se pode expandir e voltear, criando o amontoado de palavras frágeis e tontas que - iguais a todas as que já foram ditas e apesar disso -, atapetam de insignificantes, minúsculas e efémeras cores os segundos que de vez em quando olhamos distraídos.

Às vezes esqueço-me de que duro um dia.

13.11.24

A Gaffe, arsénico e rendas velhas


Nem sempre as joias são o costumado brilho encastoado em metais de fino trato.

Há joias escondidas, presas em papel transparente, dobradas com o rigor e com o cuidado extremo das avós e perdidas nas gavetas maneiristas do móvel esquecido há tanto tempo.

Procurem-nas!

São preciosidades inigualáveis e com o temor que nos faz suster a respiração, com a vertigem de quem comete um crime, com o arfar de excitação de quem se vê a viver uma paixão que não lhe pertence, voltemos a usar o tempo perdido e que Proust nos perdoe e nos proteja.

A Gaffe no vosso mail


Alguns portugueses - sobretudo os do meu querido Porto - trazem nas redes algumas pérolas que fazem rolar a língua por mares que pareciam ter sido abandonados, mas que continuam a encher as marés do nosso espanto linguístico.

Soltemos algumas do fio do colar das frases ouvidas por aí:


Alevantar O acto de levantar com convicção, com o ar de a mim ninguém me come por parvo. Alevantei-me e fui-me embora.

Aspergic Medicamento português que mistura Aspegic com Aspirina.

Assentar O acto de sentar, só que com muita força, como se fossemos praticamente um tijolo no cimento.

Capom Porta de motor de carros que quando se fecha faz POM!

Destrocar Trocar várias vezes a mesma nota até ficarmos com a mesma.

Disvorciada - Mulher que se diz por aí que se vai divorciar.

Destrocer - Torcer várias vezes.

Deslargar Largar várias vezes o que quer que seja.

É assim - Talvez a maior evolução da língua portuguesa. Termo que não quer dizer nada e não serve para nada. Deve ser colocado no inicio de qualquer frase.

Entropeçar - Tropeçar duas vezes seguidas.

Eros - Moeda alternativa ao Euro adoptada por alguns portugueses.

Exensar Termo que para ser bem utilizado tem que ser dito rápido para que algumas pessoas percebem que se quer dizer deves pensar.

Falastes, dissestes e afins Articulação na 4ª pessoa do singular.

Ex: eu falei; tu falaste; ele falou, tu falastes.

Fracturação - O resultado da soma do consumo de clientes em qualquer casa comercial. Casa que não fractura, não predura.

Enmigos O que vou ganhar depois de alguns lerem isto.

Mô A forma mais prática de articular a palavra meu e dá um ar afro à língua portuguesa, como Bué ou Maning (muito em Moçambique). Ex: mô tio.

Nha assim como , é a forma mais pratica de articular a palavra Minha. Para quê perder tempo não é? Fica sempre bem dizer mô tio e nha mãe, por exemplo. Poupa-se imenso.

Númaro Já está na Assembleia da República uma proposta de lei para deixarmos de utilizar a palavra número que está em claro desuso. Númaro já é usado por muitos deputados.

Parteleira Local ideal para guardar os livros de português do tempo da escola.

Perssunal O contrário de amador. Muito utilizado por jogadores de futebol.

Ex: Sou perssunal de futebol. Deve ser articulado de uma forma rápida.

Pitaxio Aperitivo da classe do Mendoim.

Prontus Usar o mais possível. É só dar vontade e podemos sempre soltar um prontus! Fica sempre bem nos lugares mais bem frequentados da sociedade.

Prutugal País ao lado da Espanha. Não é a Francia.

Rondana Uma roldana que ronda à volta de si mesma.

Shampum - Líquido para lavar o cabelo que quando cai na banheira faz PUM.

Stander de vendas Local de venda. A forma mais famosa é sem duvida o Stander de tomóveis.

Tçou Inicialmente usado por músicos da zona de Cascais, rapidamente se estendeu a outros tipos de utilizadores. Atender o telefone e dizer tçou é uma experiência aconselhável a qualquer um com ligações ainda que vagas à cantora Ágata.

Tipo Juntamente com o é assim, faz parte das grandes evoluções do português. Também sem querer dizer nada e não servir para nada, pode ser usado quando se quiser, porque nunca está errado nem certo. É assim... Tipo ‘tás a ver?

Treuze – opiniões de Miguel Sousa Tavares.

Vosso mail - Se não me atenderem o telemóvel obviamente que vou para vosso mail. 


12.11.24

A Gaffe "homossexualista"


A Gaffe está mais uma vez ao lado, mas mesmo juntinho, da maravilhosa ministra da saúde, Ana Paula Martins, que a cada passo nos deslumbra, superando aquela coisa feia que a estátua da Liberdade tem na mão erguida.

Depois do descalabro dos concursos promovidos pelas ULS para jovens médicos especialistas; depois de nos ter mentido e tentado enfiar o INEM no lugar que lhe pertence desde tempos imemoriais, ou seja, a andar de carroça e a chicote das horas extraordinárias, chega-nos agora revoltada, chocada, escandalizada, com a cor dos boletins de saúde infantil e juvenil que, sob os auspícios da Direcção Geral de Saúde, passariam de azul para os meninos e rosa para as meninas, para um amarelo para todos.

Garvíssimo.

Este abuso colorido da DGS condena as crianças ao jugo que da moderna tendência homossexualista – diria Maria José Vilaça ou Helena Costa - que grassa no Ocidente e que, mais cedo do que se pensa, vai desertificar o planeta.

Se já existem colecções de roupa infantil que tanto dá para um lado, como para outro – o que já é de bradar aos céus -, tentar abolir a distinção dos sexos através da cor, cerceia a nossa capacidade de discernimento e contribui para esta espécie de daltonismo sexual que os homossexualistas defendem e promovem, ultrapassando mesmo as fronteiras e os limites traçados por Deus.

A Gaffe considera um HORROR.

Deixem as crianças em paz!


Acredita piamente - como Deus manda - que esta contínua aniquilação de códigos ancestrais, levada a cabo por gente LGBT, ou LGBTI, ou LGBTI+ - ou coisa que o valha -, é um perigo para a civilização, tal como a conhecemos e respeitamos, e não vai ser interrompida antes de destruir por completo a vantagem que detínhamos sobre o homossexualismo - que nos foi dada por Nosso Senhor -, e que nos permitia imediatamente identificar - e saber lidar com isso - qualquer personagem que nos surgisse na frente.

Tentar anular os códigos sociais expressos nas cores ou trocar o logótipo da identidade digital do país confundida com um símbolo da nação, é trágico, mas é tarefa destes monstros que consideram primordial levar a civilização ao homossexualismo total.

A Gaffe teme que se intensifique a possibilidade de uma mulher usar um vestido vermelho intenso e justo, sem se perceber que anda a pedi-las. Não é de todo de espantar, pois que já é com alguma dificuldade que conseguimos discernir um toxicodependente de um gótico, ou de um emo, ou de uma pessoa de luto, através do preto que usa em look total e - a propósito - já é absolutamente incriminatório intuir - porque somos lógicos e racionais - que uma pessoa de cor mais escurinha é uma ameaça potencial à nossa segurança e que tem a pila grande, ou que uma pessoa mais amarelinha tem a porcaria dos genes dos olhos em bico entranhada no corpo e abre lojas com plásticos a cheirar a petróleo, mesmo ao lado da Prada.

Uma mãe que sabe o que é ser mãe, que sabe estar, que se comporta como uma verdadeira mulher, sabe por instinto que se colocar nos ombros do filho um polo azul discreto, o menino não mudará de sexo na idade maior e com certeza conhecerá por essa altura, no golf, meninos que usaram, pousados nas costas, polos azuis discretos. Juntos podem perfeitamente fundar uma empresa e encomendar uma colecção que aproveita a onda homossexualista àquela gentalha que em criança ousou cores berrantes e que por isso agora é estilista.

Pelo menos, dá lucro.


Uma mãe que sabe o que é ser mãe, que sabe estar, que conhece o seu lugar, que se comporta como uma verdadeira mulher, sabe que se vestir a filha de princesa cor-de-rosa, a futura jovem tem mais hipóteses de casar com o menino do polo e - se usar branco - ser amante dos amigos de polo do marido e que será sempre mais que Ministra da Saúde.

É evidente que se uma mãe não merecer este santo estatuto, e vestir a sua criança de vermelho, ou preto, ou quiçá de branquinho, terá no futuro um comunista ao jantar, ou um drogado suicida, ou um homossexualista na Companhia Nacional de Bailado.

O pai está a trabalhar. Não aborreçam.

Já nos tentam roubar a possibilidade de reconhecer as boas pessoas pela cor da pele, não nos retirem agora a capacidade de distinguir através da cor dos boletins de saúde para meninas e para meninos, o que é de aproveitar do que não passa de manobra destruidora do lobby do homossexualismo.

Se Deus, na Sua infinita sabedoria, nos fez e nos vestiu de cores diferentes por alguma coisa foi.

Bravo, senhora ministra! Não parece nada que a menina saiu agora mesmo debaixo de uma pedra.

A menina continue que não maça nada.


Em relação ao INEM, a mobilização maciça da sociedade civil, por exemplo, seria uma defesa viável, bastando para tal que os profissionais em causa se dispusessem a motivar, a solicitar o apoio, a solidariedade e a compreensão dos que sabem, porque sentem na pele e no resto do corpo – seu ou do muito próximo – que, numa urgência, bastam alguns segundos a mais para se perder uma vida. Parece evidente que esta mobilização solidária embate com oenraizado quem quer que se cuide e não colhe frutos quando está em causa a causa dita alheia, mesmo quando nos toca por motivos trágicos, mas de través.  Era mimoso ver na rua de cartaz ao peito, palavras de ordem na estrada, a lutar pelo INEM e por todos os profissionais de Saúde, toda a gente que é agora saudável. Com a certeza de que os seus sofredores continuavam a ser cuidados com a qualidade extraordinária que é característica da esmagadora maioria dos profissionais pelos quais se manifestam. 

Era bonito. Cheirava a um movimento por Timor, mais pequenino.

 

A Gaffe paciente


A minha paciência é uma mulher de sorriso imóvel e mudo. Usa avental branco e saias rudes de fazenda espessa, compridas e rodadas. Tem um rosto redondo e pequenas rugas fixas nos cantos dos olhos poucas vezes fixos nos que a olham e unhas sujas de terra e de descascar batatas. É ligeiramente curva e traz um xaile cinzento esburacado a cobrir-lhe a indiferença.

Cheira a sabonete.

A minha paciência faz trabalhos de casa. Cose, remenda, emenda, cozinha, esfrega os soalhos, engoma e asseia os quartos, serve o pequeno-almoço nas camas e estende a roupa depois de a lavar nos tanques com sabão antigo, cuida da louça e está atenta ao brilho das peças de prata.

É silenciosa.

A minha paciência faz as camas onde se deitam os outros. Aconchega-lhes os lençóis, murmura-lhes histórias até que adormeçam. Apaga as luzes e encosta as portas. Depois, por entre a noite, a minha paciência sobe as escadas, entra nos quartos descalça e, em bicos de pés, começa a estrangulá-los.

A Gaffe pelo espaço


Há desilusões que trazem dentro o impulso que nos permite descobrir a água em Marte.
Há outras que nos deixam como símios a partir os restos que sobraram de um cadáver.

Zaratustra provavelmente diria que tudo depende da forma como ouvimos Richard Strauss.

11.11.24

A Gaffe lendária


Gosto de lendas. Não sei muitas, mas há uma que me agrada particularmente.

Em casa dos meus avós há um reservatório de água que parece um espelho.
Mete medo. Profundo, gigantesco e circular, guardado por árvores que agora sei serem teixos, muito velhos, muito altos e muito altivos. Não encontramos facilmente esse lugar. Está literalmente escondido, encerrado como se guardasse mil segredos. Chegamos até ele por um caminho estreito e só sabemos que nos encontramos perto pela imensa frescura e pelo silêncio que faz lá dentro.
O reservatório é alimentado por um fio de água que vai tombando devagar sem fazer o mais ínfimo ruído.
É quase mágico e quase assustador de tão pacífico.

Reza a lenda que quando o fio de água que desliza se apagar, o último senhor será realmente amado e por amor morrerá sozinho.
O fio corre ainda, mas amedronta-me a palavra último.

Mas esta é uma lenda tão velha como estas árvores. Não conheço uma menos perdida no tempo e mais urbana.
 
Inventemos uma.

Escolhemos um mês. Pode ser Novembro a acabar. Um dia da semana. A escolha não será difícil, porque há poucos. Sexta-feira, por exemplo.
Agora façamos chover. É sempre bom existir chuva numa lenda.
Falta o mais difícil. Personagens.
Façamos assim: desenhemos uma apenas. Um homem sozinho. Jovem? Não. Vamos envelhecê-lo, dar-lhe os contornos da tristeza e do desterro.
Ninguém suspeita que ele passa pelas ruas friorentas. É invisível entre a chuva. Usa sobretudo e botas esgotadas e traz luvas de couro demasiado grandes que lhe escondem os dedos.
Vem pela chuva, indiferente e frio.
Vamos colocá-lo agora num Café qualquer, de manhã cedo.
Veio de longe e espera. Uma vez por ano, vem e espera. Sentado numa cadeira qualquer, num Café, numa Sexta-feira de Novembro.
Olha para o relógio. Espera e não gosta de esperar. Tem medo que não venham.
Ninguém vem. Nunca ninguém veio.
Uma vez por ano, século após século, ninguém chega para o vir buscar.
O homem desiste e lentamente deixa que a chuva o apague.
Numa Sexta-feira de Novembro.

Há fios de água em todos os tempos que se enredam nos homens que morrem de amor.

A Gaffe sócio-demográfica


A Gaffe ficou siderada quando deu conta da existência de um papelucho que pedia que aquelas pessoas pequenas e maçadoras respondessem se gostavam de homens, de mulheres ou de ambos.

A Gaffe desconhecia a existência do ambos e fica aborrecidíssima por não ter tido a oportunidade, em criança, de o experimentar.

Em relação ao resto, a Gaffe só consegue responder que, aos nove anos, dependia imenso do que tinha fumado primeiro.