4.9.20

A Gaffe de elevador

STANLEY GONCZANSKI
Stanley Gonczanski


Entraram as duas. Uma, de máscara cirúrgica. A outra de cara ao léu.

- É uma falta de respeito, minha senhora. A caixa do elevador não é um espaço seguro. Devia estar a usar protecção.
- Não se preocupe que não corre riscos, qu’eu não tenho covid.

Uma sabe que não está doente e a outra que vai correr riscos.

Estou suficientemente cansada para conseguir andar de elevador e para me ser indiferente que usem, abusem, ou não usem, uma das poucas defesas que temos contra o vírus. Se nos encontrarmos depois nos cuidados intensivos, sei que terão tempo para introspecções meladas pela culpa.

Vão discutir. Discutem sempre. Os canivetes dos guinchos não costumam tardar. Há ditos e beliscões daninhos que se tornaram habituais nas caixas mais ou menos fechadas usadas agora para enfiar a vida. Não me aborrecem os rancores pisados que erguem espigões em nome da decência e do respeito sanitário. Estou esgotada pelo calor e pela ardência do decoro social.

Quero lá saber.
Que comam brioches.
Eu como brioches.

Enervam-se miudinhamente e ainda faltam vários andares. O elevador é lento dos inícios dos séculos de grades puxadas à mão.
O mastodonte estanca num número qualquer e a porta arrasta o seu pesado fardo de ferro.

O homem entra distraído.

Traz cravadas nos ouvidos aquelas coisas pequenas por onde uma canção se vai esgueirando pelos cantos. Reconheço White Horse de Scott Matthew e sinto-me a sorrir agradada com a escolha e com a extraordinária beleza quase setecentista do trintão barbudo, de musculatura lustrosa, lambida pelo sol que explode numa espécie de calções de caqui esgotado e numa parca t-shirt que já viveu juventudes várias e deixou num passado tatuado o pano para as mangas.

Pesa o homem no habitáculo - como diz a sem covid -, e pesa a brutalidade de silêncio que desabou cá dentro, como se o corpo do rapagão tivesse absorvido os medos e as coragens.
Olhamos pasmadas a total indiferença do gigante que continua a mexericar nas suas melodias armazenadas, fazendo mover pequenos e inesperados músculos das costas mirados por duas mulheres subitamente mudas e por uma terceira ainda mais gulosa.
O homem saiu antes de todas. 

O silêncio ficou e continuou até ao último andar, trespassado de repente por um suspiro.