27.5.21

A Gaffe mortal


A insistência com que nos atiram o ácido da efemeridade de se ser feliz, da fugacidade da beleza e da maleficamente recheada conta bancária, à nossa pele bem tratada - elevando-se aos píncaros do sublime o desprendimento e a desapropriação dos anacoretas, a consciência da morte desgraçada e podre, a beleza interior dos feios e dos pobrezinhos -, é uma desgraçada e repelente ode à infelicidade.

Uma mentira pindérica que vai ganhando contornos castradores à força de nos tentar convencer que somos abjectas apenas porque não somos feias, que não somos pobrezinhas e que desses factos temos consciência. O horror ocorre porque encarnamos os mais condenáveis dos pecados ao não sofremos atrocidades dedicando-nos a tempo inteiro à tragédia humana.

Não podemos ser felizes, mesmo sabendo que a felicidade dura o tempo da faísca.
É criminosa a beleza que se vê.

Ai de nós, miseráveis bichinhos temporários, se ousamos ter dinheiro para comprar uma cadeira biliões de vezes mais cara do que o couro cabeludo das mártires conscientes da finitude do universo e somos altas e magras e elegantes e desejadas e amadas e felizes e nos esquecemos de quando em vez da Faixa de Gaza e da morte da cotovia.

Chicoteiem a Gaffe! Usem a chibata das santas e das poetisas de algibeira!

Esta rapariga ousa ser feliz sem pensar nos abismos das desgraças, atreve-se a ser bonita, jovem e cuidada, sem ser perseguida pelo espectro da morte inevitável e quando lhe falam de beleza interior pensa sempre num decorador maricas.

É evidente que vai morrer! Mas pelo menos foi ferozmente feliz, usou imensas pérolas, vestiu imensos costureiros, calçou outros tantos, usou perfumes inesquecíveis, foi para a cama com os homens estupendos que quis ter, teve amigos divinais, comprou inutilidades medonhas e absurdas e fez imensas viagens - viagens sérias, não daquelas deprimentes dentro de um quarto pindérico e sem ventilação, mas com grande beleza interior.

Não sejam invejosas. Ficam com coisas estranhas enfiadas nos olhos. Dói imenso. 
  

26.5.21

A Gaffe por empoar

Bill Mayer

A Gaffe tem uma declarada admiração por Isabel I, a prepotente ruiva estéril, capaz de atrair todas as amarras e armadas.

Há, no entanto, un tout petit point que requer algum distanciamento, embora - et malgré tout -, comprove em simultâneo uma funesta e rumorosa aproximação.

A Rainha, como toda a gente sabe, dissipou corpo e alma ao usar ao longo do seu soberano tempo Venetian Ceruse, um pó branco tóxico, assassino, um composto de chumbo e vinagre, com que escondia os estigmas da varíola, ao mesmo tempo que a envenenava, lhe deixava a pele acinzentada e enrugada e a fazia perder cabelo e dentes.
O batom que era autorizado a pousar nos seus lábios curtos e afiados como facas, continha metais pesados, e o sabonete líquido com que lavava o rosto possuía ingredientes como água de rosas, mel, cascas de ovo e mercúrio - que deixava a pele de Sua Majestade mais macia apenas porque lhe estava a corroer a carne.

A Rainha morre, pois, ressequida, coberta de pó branco-homicida.

A Gaffe usa Shiseido, Sensai e Dior - entre outros mais que tais - e não pensa perder dentes e acinzentar, secar, enrugar, mirrar, descarnar, e ficar careca - pelo menos tão cedo.

Em contramão, esta tão ruiva como Sua Alteza tem por certa a algazarra tresloucada dos seus caracóis quando se aproximam de territórios de humidades e de nevoeiros shakespearianos.


Após esta preciosíssima pérola de erudição - que torna a Gaffe um dos expoentes da intelectualidade e do bem-pensar que por aqui grassa -, esta rapariga reconhece que, tal como Sua Majestade esgrouviada, é capaz de se enojar com as perucas das pequenas mulheres pequenas que as enfiam para disfarçar a nulidade perversa que lhes rasa a cabeça.

As caracoletas lustrosas, os caracóis emotivos e sensíveis, a laca solidária, a lisura escorregadia das melenas e a doçura poética deslizante das madeixas, são tão só momices oleosas e cor-de-rosa que encapotam o charco de nulidade perversa com que assombram em silêncio a vidas dos outros.

São bandeiras desfraldadas em nome de umas quantas causas.

São odes e hinos abertos ao vento da honra, da claridade, da humanidade, da diversidade e da mais alta noção de amor e liberdade, enquanto nos mais recônditos cotovelos trazem toda a maledicência universal, todo o mercúrio e chumbo dos murmúrios e todos os rumores do preconceito. Tudo pela calada dos vermes e pela hora em que todos os nojos são pardos.

A Rainha decapitá-las-ia.

19.5.21

A Gaffe palestiniana


Quando a História se torna fotogénica, torna-se em simultâneo indiferente ao que se retrata e o sentido do que se quer dizer é apenas um pálido recanto inútil na película da imagem.  


12.5.21

A Gaffe com a baronesa


Pearls are like poets’ tales: a disease transformed into beauty, and at the same time transparent and opaque.
Karen Blixen

As mulheres também.  

11.5.21

A Gaffe da bela Inês

Maurizio Di Iorio

A Gaffe tem de transcrever a escuta que fez à fofíssima Inês Pedrosa, só para se congratular pelo que lê, vazado do que soa, a propósito daquela espécie de estrangeirismo, com uma gradezinha no início, chegado a Portugal - não sabemos se em barcaça de juncos, se em insuflável, como tudo o que é péssimo usa agora para chegar a um país civilizado.

A Gaffe está ao lado de Inês Pedrosa, porque admite que também ela perde imensas oportunidades de aguentar a tansa da boca fechada, pese embora, no seu caso, não ser paga por isso.

- (...) Imaginemos que o fim da escravatura era os negros passarem a escravizar os brancos. É nisto que estamos agora, vamos usar um esquema de terror (…), o que se pretende é arrasar reputações. Devia haver a sororidade prévia de garantir que há 10 acusações para [a acusação] ser sólida.

A Gaffe está solidária com a Inês que posta em desassossego pelo #metoo, rasga as vestes pelo amigo de há imenso tempo - uma pessoa de bem, por quem entrega as coisas ao fogo, um intelectual de renome, um servidor da bela arte de editar, um cavalheiro a toda a prova e trote -, agora denunciado, acusado de assédio, por uma megera doida que entretanto já conseguiu apaniguadas, uma quantidade substancial de sequazes neste péssimo vício de destruir reputações masculinas por dá cá aquela palha. Mentirosas!

Se desancarmos imenso nestas ratas vingativas, se nos amotinarmos desgrenhadas contra o irrisório, o caricato, o ínfimo número de falsas acusações, temos, no bolo todo, garantida a segurança da cereja dos amigos, pois que os amigos não são para acusar! Não é que Inês pretenda liderar uma honesta e justa caça às bruxas - não é, de todo -, pois que se trata mais de um apanha bicho. Um terror. Uma falta de chá.

Falta por falta, escasseiam as outras nove acusações para ser possível aceitar que é provável que o rapaz se tenha descaído e tentado roubar um beijo - muito fin de siècle - à fedelha que estava a pedir muito mais do que isso, dados os preparos - sendo que derivado aos preparos também se tornou um atentado ao pudor e meio caminho andado - Deus e a mulher sabem muito bem para onde, que aqui ninguém é ingénuo, que olé, picolé - diz o povo, embora parvamente, é certo.

Seguindo a sugestão de Inês Pedrosa, os Tribunais receberiam os assédios, gota a gota, pingo a pingo, faziam pacotinhos, carimbavam os cartões e, ao fim de dez, ofereciam um desconto. Seria a situação mais prática e evitaria que até mesmo Rodrigo Moita de Deus, que não prima pela defesa de causas, ficasse perplexo, vacilante e aturdido, perante o protesto da senhora contra as megeras oportunistas que arrasam reputações - e a Gaffe acrescenta que vai bem e a eito -, lares e casamentos.

Como Inês Pedrosa, também Raquel Varela parece - podendo não ser, pois que o parecer deve vir a dez para solidificar a enunciação -, ciciar o que nos rememora o lamento em relação às mulheres, os homens agora já não podem fazer nada. A Gaffe vai esquecer, em nome da sororidade, que não sabe quando foi que as mulheres autorizaram que os homens lhes fizessem tudo.

Esta rapariga assume que está com elas, como as iscas, e também acredita que é suspeito o tempo que as outras levam a abrir o bico - embora neste contexto se torne conveniente reformular a frase. Uma suposta assediada deve denunciar o eventual caso de assédio dentro do prazo que as pessoas de bem estipularam pra tal. Não é quando lhe dá para aquilo - pois que se corre então o risco de importunar e injustiçar senadores que são muito cá de casa, amicíssimos, de boas famílias e tantos tão bem colocados.

A Gaffe reconhece que a menina é, irremediavelmente, uma escritora de segunda linha e talvez seja por isso que coloca as mulheres assediadas nesse mesmo patamar de qualidade, mas mesmo assim, Inês, minha querida, seria interessante que se apercebesse que a mulher trancada nos limites que nos aponta, pode ser, também por si, emudecida definitivamente.

Pelo menos, minha querida Inês Pedrosa, ficamos a saber que a menina é abolicionista. A Gaffe supõe apenas se os escravos não forem os de lá de casa.

10.5.21

A Gaffe poeirenta


 Foi com Raul Brandão - tão arredado do cânone literário! - que me apercebi da magnitude do mistério que um texto pode conter.

Lia A Morte do Palhaço e em cada página que era lida dava conta, quase sem disso ter consciência, das infinitas arquitecturas das palavras e deixei-me deslumbrar pelos edifícios que se formavam e erguiam incessantemente num jogo polissémico que se multiplicava por frases nunca lidas até ali.

Foi com Raul Brandão que entendi que talvez seja a consciência da mutabilidade da frase e da sua capacidade de se unir a outras num encadear eterno, como até ali nunca foi história, que me fez acreditar que não basta soletrar rabiscos, que não basta perceber o mecanismo da língua, que não chega termos a capacidade de colar um vocábulo à frente de um outro, para que um texto nos atordoe.

Não basta.

Acredito que reconhecer um escritor se faz nas catacumbas da alma, talvez muito antes da obra ser sujeita ao escrutínio do bisturi da análise literária.

É esmagador o poder do escriba capaz de - com palavras gastas e velhas como a morte -, construir paisagens originais, absolutamente desconhecidas pelos outros, nunca vistas, nunca lidas, nunca sentidas da forma que nos é oferecida como quem nos entrega a surpreendente simplicidade do movimento eterno, a espantosa floração do único.

Talvez seja isto que me faz acreditar que apenas o conhecimento profundíssimo dos livros nos faz perceber que não passamos, quase todos, de pequenos tontos, ingénuos, iludidos, fraudulentos, hortofloricultores de pechisbeque, a usar as mesmas pedrinhas de poeira, umas atrás das outras, tentando que os espaços minguados que ocupamos tenham chão. Usamos coisas velhas para acabar como partimos, envelhecidos e de mãos vazias, porque a poeira se esgueirou por entre os dedos.

Apenas os que usam o que velho o tempo foi fazendo, fazendo do que o tempo fez velhice o esplendoroso encontro com a surpresa, acabam a escrever.


Talvez da derradeira terra, das decompostas recordações das almas, do estrume que pesa sobra as vidas, do corpo que nos morre a cada passo e da morte que resta em nós antes da alma, talvez daí – talvez, que nada é certo -, talvez e só então, se deslace o voo de uma só palavra num bater de asas mínimo e perfeito.


8.5.21

A Gaffe procuradora


Não é que provoque grande prurido a impudência de se aldrabar currículos, sonegando ou aditando o que se achar por conveniente.
A forma mais fácil de desbatocar um trapaceiro é atravessar com cautela e lupa em riste o que ele afirma ser biográfico.

Também não instiga grande tumulto o facto da Procuradoria Europeia ter empoçado e estagnado perante os malabarismos do governo português que num flick-flack à retaguarda emenda a sina e diz que não à vencedora, Ana Clara Almeida, trocando-a pelo currículo forçado e parlapatão de José Guerra.
A morosidade crónica do andamento europeu atabafa a ronçaria deste produto.

O que é extraordinário é apreciar o pimpão a classificar como lapsos as trapacices governamentais relativas à sua carreira, aceitando todo contentinho o cargo - a que se aconchegou depois, porque houve engano -, ocupando no imediato um dos futuros gabinetes da procuradoria europeia, transformando-a desde já em mais uma inutilidade liliputianamente pomposa e, como é óbvio, nada credível, embora de muito provento.

É curioso comprovar que basta um chisco - ou um chico, desde que esperto -, para tonitruante escaqueirar e inutilizar um cantinho de repouso que se pretendia muito arrumadinho, com muitas pastinhas com muitos papéis de lá para cá e de cá para lá, sóbrio e mui discreto.

A Gaffe começa a suspeitar que este país já não tem gente.

7.5.21

A Gaffe visível


- (…) até porque neste momento ando a ver uma pessoa - confessa a rapariga com um pedantismo inglês muito pouco cobiçado.

- Anda a ver? – ouvem-se as garras a riscar as palavras.

- Uma pessoa, sim.

- Neste momento anda a ver uma pessoa? – insiste a minha irmã, rasurando o enlevo.

- Sim! Neste momento tenho ao meu lado uma pessoa - irrita-se a menina.

- Mas, minha querida, está a falar de um namorado ou de uma alucinação?
Mana

6.5.21

A Gaffe escreve a Suzana Garcia


Caríssima Sanocas,


Permita que a trate desta forma, pois que as pessoas de bem se devem unir nos diminutivos e em tudo aquilo que extermina os extremos - execpção feita à extrema-unção, que será o que nos restará se a escumalha ganhar aos dados e aos porcos, como usa dizer aquela gente que segue para a Amadora ao fim do dia.

Escrevo estas parcas palavras pela apreensão causada pelo apoio com o que CDS-PP a mimoseou. Sobretudo temendo que se fie na virgem e não corra - como também comentaria aquela gentalha a que já aludi e que só pensa em sexo violento.

Minha querida, o Francisquinho entrega-se ao seu colo porque ainda não saiu daquela fase nojenta da sucção que aquele austríaco parvo decidiu que se devia tornar do conhecimento público, sem pudor algum e sem qualquer respeito pelas pessoas que ficam expostas a cachopada a mamar como se não houvesse amanhã.

Não acredite em amparamentos que se dependuram apenas nas copas da nossa abnegação e dedicação à causa pública e, mais do que tudo, na pureza loira da nossa ideologia.

Acredite em si. Apenas em si, minha querida valquíria, minha intrépida rapariga com guizos e sem pérolas, meu Vermeer numa luz de estúdio. Nunca dê agrados à populaça. Deixe, no entanto, que lhe sussurre - entre gente de bem, volta a clamar o povo, todos os desagravos ficam em águas de bacalhau - que não percebi claramente a crença na vitória da sua candidatura a amadora. O país a precisar de profissionais, de candidatos profissionais, como Santana Lopes ou o Duarte Pacheco - o insuflado, não o de Loulé e do Estado Novo -, como de material operacional, bazucal, no depósito de Tancos e a menina a cometer um pelintrismo destes!

Sei, de fonte segura, e não pela Maria da dita, que a menina é aquilo que basta ao povo que habita aquela coisa afastada. A verdade é que quem nunca provou a nouvelle cuisine, ou a gourmet, ou a molecular- e voltando a citar porcaria, pois que estamos em campanha e é bom parecer que prestamos atenção às pessoas mais depauperadas -, o bacalhau basta.

Não pense em fraquejar ou desistir. Enfrente de peito escancarado a arraia miúda e corte rente os testículos à oposição que come criancinhas. As pessoas de bem estão consigo, tanto quanto ao lado dos proprietários daquelas casotas imbecis em Odemira, requisitadas de forma incompetente e confusa, mas civil e civilizadamente, por um ministro-cartoon, fazendo erguer a ira majestosa de Júdice, da Ordem dos Advogados e dos advogados da ordem, que dos atentados aos direitos humanos só reconhecem os que, por conveniência dos donos, encontram pelos caminhos da escravatura.

Não se amofine, não se confine, não se conforme e sobretudo não se deixe vitimizar quando os tarados, num body shaming tenebroso, desatarem a aludir às suas poderosas mamas que podem em circunstâncias muito específicas abafar o que não lhe convém ser ouvido. Não tem sido fácil, mas é uma questão de mais treino.

Acuse essa gentalha de assédio. Vai ser obrigada a chispar - bazar? Chibatar? Chibar? Nunca conseguiremos domar a linguagem dos mais necessitadas, não é? - alguns nomes e provar que a apalparam e conspurcaram as suas corajosas e civilizadas intenções, mas temos de aceitar que nos pomos sempre a jeito. É inevitável, minha colossal senhora, que descredibilize o que é realmente flagicioso, mas fica sempre bem numa crónica criminal de um programa de um canal qualquer com lixo matinal.

Minha caríssima Sanocas, provavelmente teremos de esperar que o populacho ignore que existe gente cujos progenitores deviam ter limitado a sua actividade sexual a uma sessão de masturbação mútua. Concordará comigo, pois com certeza, pelo que de si comoventemente ouvimos. 

Exterminemos pois a raiz ao Pensamento.

5.5.21

A Gaffe dentro de casa


Inventemos, pois, a forma de replicar a flor branca das sardinheiras mais frágeis. O modo de proteger a delicadeza dos caules que quebram com maior facilidade. A forma de abrigar as campânulas de luz que se abrem com a debilidade esperada em flores mais castas e esmeradas.

Traz, Josefa, o vaso brusco para dentro de casa, aproxima a candura das pétalas catraias da rispidez das tuas mãos que de repente pousam o quebranto do mel no parapeito da ternura.

Cuidemos então da fragilidade da vida afligida das sardinheiras brancas e das pérolas.

A Gaffe branca

Saturando o ar de áridos ventos, águas turvas e panos coloridos, o senhor historiador saudoso, lugente, pungente e plangente, narra-nos a história finda dos colonos britânicos no império das Índias - que ocupadas esperaram por Gandhi, sabendo como acreditar em Godot.

A minha irmã começa a tamborilar no braço impaciente da cadeira.

- Da Índia confesso que só gosto daquelas zebras perigosíssimas.

4.5.21

A Gaffe divergente

Michael Kutsche

A Gaffe, por estes dias, ficou admiradora incondicional de Bernardo Moniz da Maia, ultrapassando desta forma o desregramento idílico que tinha de quando em vez pelo mavioso e mafioso Berardo.
As cascalhadas do comendador já não ressoam nos corredores da Assembleia da República; a circunspecção do olvido financeiro de Salgado já não parece excitar as bancadas mais concupiscentes do semicírculo; os escárnios e maldizeres do filósofo de panela de pressão parisiense que - diz-se -, sorvia as profundezas do cozido do amigo, já não é de foguetório, pois que um juiz só encontrou o vapor, e nem sequer a energética figura do gestor medalhado que fundiu o fusível da empresa, electriza os assentos parlamentares.

A Gaffe encontra em Bernardo Moniz da Maia o inesperado, o original, o quase genial. O Bernardo é um primoroso príncipe da paródia nacional, a mais requintada fossa da soberba. Um aprimorado pândego capaz de uma monumental indiferença e colossal desprezo ultraterrestre pelas demandas da arraia miúda. O Bernardo consente ser considerado um indigente mental, um imbecil trauliteiro, o centro de galhofa colectiva, um idiota insciente e néscio, mas só depois de ter encontrado no povo português um mealheiro de quinhentos milhões de euros que usará para o que der e sobretudo vier, que neste momento só veio com um parco carrito em leasing.

A representação impossível de Moniz da Maia perante um público convenientemente eleito e que muito se divertiu, é uma obra-prima de menosprezo, de desdém e de sobranceria, que diminui de forma bizarra, mas demasiado eficaz, os meninos deputados e as meninas deputadas que sorriram perante tanto cretinismo e abafaram as risadinhas, descurando o facto da sua própria figura e seu próprio papel na confrangedora peça fazer acreditar que seriam a origem do escárnio do inquirido no final do acto.

Moniz da Maia desvenerou de uma forma levada ao extremo, a trambicada da Assembleia - e as gentes que a elegeram -, ao ponto de lhe ser desapegada e vazia a possibilidade de o considerarem doente mental.

Quinhentos milhões de euros valem bem um país a troçar da figura de tanso e de palerma que mimamos para descansarmos depois nos paraísos que quisermos, enviando a conta aos papalvos que divertidos abafaram as gargalhadinhas das suas tão comprovadas superioridades mentais.

O Bernardo é absolutamente diferente daquele cavalheiro cansativo, muito Downton Abbey, incapaz de assumir o mais ínfimo resvalo social, humano, humanitário ou mesmo financeiro, mas que esconde nos silêncios esconsos de dentro de si um psicopata porco - um porco psicopata -, que se viciou em cocaína e indiferença e que gosta de chafurdar na lama e de arrancar os dentes aos serviçais.

O Bernardo é diferente. Não usa smoking.

3.5.21

A Gaffe amadora


A Gaffe, em boa verdade, sempre teve uma irritante sensação de déjà-vu quando em modo distraído lhe surgia um demarcado líder partidário português. A aparição transtornava-se em animação e toldava-lhe o siso, pois que esta tonta rapariga o substituía sempre por Mr. Burns, arrepiante personagem dos Simpsons.

Neste instante, a Gaffe lobriga a tenebrosa injustiça que durante todo este tempo afectou a cabeça partidária e de bancada tão visada pelo infortúnio.

Não por lhe ser especialmente penoso o exercício sinistro do body shaming. A Gaffe sempre foi uma cabra e arrasar uma criatura apenas com disparos directos - ou mesclados de algodão e disfarçados de nuvem e de desenho animado -, ao corpinho de alguém, nunca a fez temer o inferno - que afinal somos nós, como Sartre já reconhecia.

O facto é que - tal como para a Amadora -, bacalhau basta para que nas nossas aproximações imagéticas - digamos desta forma, para simplificar -, antes tidas como sólidas e inquebráveis, se alterem ou quebrem sentidos, princípios, paridades, semelhanças, identificações e paralelos.

Abandonando a visão simpsoniana, a Gaffe passou a olhar o grande líder partidário de forma distinta e recorrendo a outros carnavais e a diversos humores, tendo sempre presente a extraordinária macacada que é afirmar que por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher.

Às vezes, o que temos é somente uma tibieza coerciva, que resulta de uma cada vez maior desertificação ideológica, que se deixa amarrar e dominar por uma cobiça oportunista estercada pelas fragilidades e inconsciências sublevadas dos povos.

É ordinário que por trás de um homem atado e enfraquecido, sem grandeza ou outra dimensão, esteja o populismo obeso à espreita.

É que por trás de um grande homem, há, isso sim e bem visível, uma consciência de que perder ou ganhar são também duas questões de dignidade.


1.5.21

A Gaffe desaforada

Iselin Steiro por Steven Meisel

- Não posso acreditar que seja assim tão distante como parece, minha boa amiga. Qual é, por exemplo, a palavra mais simpática que lhe surge quando alguém, pela primeira vez, se aproxima de si?

- … Desfaçatez.

Mana