14.1.22

A Gaffe de Saruman


Se nos atrevemos a declarar inocentemente que somos obrigados a ir ao Continente, ao Pingo-Doce, ao Intermarché para, por exemplo, comprar umas coisitas banais e baratas imprescindíveis à nossa higiene pessoal, somos olhados com o mais profundo e sobranceiro desprezo pelo pessoal que por aqui, sofisticado, só se desloca a Grandes Superfícies.

Fomos então, eu e a minha prima, à Grande Superfície comprar cereais e algodão, desodorizante e sabonete Patty de que a minha costela parisiense tem saudades.

Encontrado o desejado - embora tenha havido filosófica, assanhada e desabrida hesitação em relação à marca do desodorizante a escolher -, descobrimos que a caixa destinada aos clientes que trazem no cesto nada mais do que dez unidades estava atulhada por um carrinho a vomitar produtos pelas grades, rodas, frinchas e interstícios.

De saco de arroz carolino nos dentes, com os dedos enfiados na ranhura da moeda, rabiava uma criatura daquelas que parecem ter saído do chão do Senhor dos Anéis para atacar o Castelo. Uma anã horripilante, medonha, feia, disforme e maldosa.
Com voz de macaco de ventríloquo, aquela coisa má e cabeçuda, de pernas arqueadas e braços mesquinhos, arreganha os dentes e tenta morder:

- A gente sabemos como bocês soindes! Ambas as duas com a mania cas finas chêgo e puode tudo. Num bale a pena armar-vos aos cágados qu’eu tenho dois pares d’olhos e ninguém se ponhe à minha frente!

A anã esgadanhava o ar a rosnar furiosa com os olhos raquíticos cravados nas minhas rótulas.

Pensei dar-lhe um chuto nos dentes ou espetar-lhe os dedos nos quatro olhos e arrumar o assunto, mas a minha prima, mais presa pela surpresa do que por distinção fleumática, tentou mostrar-me que havia uma caixa livre e solta alguns produtos mais à frente. A nojenta criatura que ficasse desonesta e insultuosa a ocupar lugares a que não tem direito.

Hesitei, mas não transigi, não condescendi, não tolerei.

A anã estava escandalosamente a usar armas inconstitucionais. Percebi que o facto da mulher ser um cangalho feio e disforme, saído directamente do Senhor dos Anéis para servir no exército de Saruman, estava a ser usado para provocar uma espécie de piedosa compreensão, permissividade e condescendência perante a prepotência nata, ofensiva e intrinsecamente maldosa, independente do facto do tamanho do bicho não ser o da Naomi Campbell - igualmente cabra.

Se é para sacar da artilharia ilegal, eu também tenho algumas surpresas proibidas e MUITO TREINO no uso de reles artimanhas.

Perante a estupefacção da minha companheira de infortúnio, atiro o mais rasgado, encantador, fascinante e sedutor sorriso ao menino da caixa das dez unidades e num lance bem sujo levo o dedinho à boca, amuadita e indefesa, suplicando ao jovem cavaleiro da máquina registadora que soltasse o herói desconhecido que bem no fundo lhe cavalga o peito e que defendesse a ruiva prisioneira do dragão raquítico.

O menino da caixa abana as melenas e as crinas do cavalo no interior e já de Távola Redonda, ralha esganiçando espadas disposto a despejar tudo no carro da anã:

- Estas meninas assistezes-lhes a razão. Esta caixa é só para menos de dez unidades.

- Eu sou menos que dez unidades, Toninho. Tu bias isso, mas já num tiras os olhos de dois pares de mamas finas que de dez unidades também num bejo nada – grunhe a anã dos olhos invejosos.

De soutiens humilhados, com os pares referidos mais ou menos embaraçados, rumamos à caixa quatro, quatro pares de carrinhos à frente.

Há treinos que apesar de pequenos são mais intensivos e bem mais eficazes que os meus.