A vida lá fora, ou seja, exterior ao meu teclado e ao
monitor do meu PC, não é um espaço restrito e definido, com fronteiras
perfeitamente traçadas e limites conhecidos - sobretudo quando falamos de
sentimentos ou emoções ou atitudes. Não somos frutos que se possam cortar ao
meio separando as partes, classificando-as depois, aplicando os critérios que
escolhemos por razões que mais se aproximam daquilo que supomos ser a
nossa cara. Não podemos excluir, desprezando ou subestimando, tratando
como inútil ou não-emoção ou não-vida ou não-sentimento a
parte, o gomo, que não se adequa aquilo que nós consideramos digno de ser lido
ou olhado ou sentido como sério ou real. A vida e as emoções e os sentimentos e as atitudes são
mutáveis, renováveis, reinventáveis.
Na vida lá fora o comportamento é idêntico ao
tido na vida cá dentro, apenas muitíssimo mais difícil de manter ou
reproduzir.
Aquilo que essencialmente desejamos é a perfeição. Buscamos
- muitas vezes de forma insana, tresloucada, perigosa e imbecil - essa espécie
de quimera que só os deuses, porque estão longe de nós, dizem conhecer e
possuir. Filtramos e somos filtrados. Aquilo que não nos agrada, tentamos
abolir. Aquilo que nos dá prazer, tentamos conquistar. Só que é duro e difícil
e muitas vezes impossível apagar das nossas vidas, e até dos nossos
minutos lá fora, aquilo ou aqueles que odiamos ou, por uma razão qualquer,
nos irritam ou enojam ou magoam. A mesma terrível dificuldade é encontrada no
trabalho imenso que nos dá conservar no lá fora a admiração que os
outros nos dedicam ou aquilo e aqueles que nós amamos e que correspondem a esse
nosso sentimento.
Filtramos na vida lá fora o que desejamos que os
outros saibam de nós. Somos filtrados pelos outros e os outros recebem de nós o
mesmo tratamento. Não tenhamos ilusões. Há recantos da minha alma que nem os
deuses se atrevem a espreitar. O nem às paredes confesso não é só bem
chorado pela Amália. Todos nós sabemos entoar a melodia. Na vida lá fora somos
um - só um? - blogue, mas brutalmente mais difícil de manter e - maldição!
- com menos filtros.
Na vida cá dentro, existe uma tecla maquiavelicamente
fascinante: A tecla do Delete. Apagamos de forma imediata aquilo ou aquele
que nos incomodam. Destruímos num segundo o que nos começa a aborrecer.
Aniquilamos instantaneamente o que nos repugna e mantemos sempre envolto em glamour tudo
o que nos dá prazer ou que nos acaricia o ego. Um Einstein caseiro e uma
relatividade tão conveniente no espaço que vai do nosso cérebro ao teclado. O
tempo da escrita é mais longo do que o tempo da oralidade mesmo que os dois
estejam sob o domínio do mesmo espaço temporal.
Filtramos o que queremos ver, ouvir, ler e sentir e somos da
mesma forma filtrados e mesmo ao filtro que usamos acaba por ser acrescentado
um novo, aquele que é usado pelo Outro que selecciona inconscientemente o que
de nos quer ver, conhecer, sentir, ouvir.
Exactamente como o que se passa no lá fora, mas com
maior intensidade e um desmesuradamente menor grau de dificuldade, filtramos e
somos filtrados sem cessar. Só que aqui tudo está ao alcance de um click.
A perfeição, a que acreditamos ser a nossa - haverá outra? -, à nossa frente,
ao nosso alcance. Daí a popularidade do cá dentro.
Creio que reconhecemos que não existe uma vida lá fora e
uma vida cá dentro. Existem apenas estados de alma que explodem ou se
apagam sob um incontável número de velhas e novíssimas formas, mas que todas
são expelidas ou soterradas pela alma única de cada um de nós, usando os
filtros que escolhemos a cada minuto que passa ou em cada tecla que tocamos.
Penso ser, no mínimo, leviano classificar como fugaz, fútil,
inútil, desprezível, vazio e descartável as emoções que são geradas ou deletadas onde
quer que seja e por quem quer que seja. Acredito também que os que tendem a
validar, julgar ou inutilizar emoções, atitudes, sentimentos, sejam eles quais
forem e apareçam onde quer que seja, classificando o que é digno de registo, de
desprezo, atenção ou esquecimento - mas cuja vida lá fora depende
muito substancialmente do que se passa cá dentro -, correm o sério risco
de mais tarde ou mais cedo começar a murmurar que o homem não pousou na
lua e que é tudo fita e de não perceber que a vida entra por
todo o lado e que as emoções e sentimentos que dela fazem parte sofrem mutações
e a cada momento se reinventam. São como os vírus.
Depois existe aqui, também como lá fora, a
multiplicação, a dispersão fascinante e quase perigosa de estados de alma. Mas
estou convencida que isso é uma outra questão e que Freud se iria divertir
muito, também cá dentro.