9.7.24

A Gaffe cá e lá


A vida lá fora, ou seja, exterior ao meu teclado e ao monitor do meu PC, não é um espaço restrito e definido, com fronteiras perfeitamente traçadas e limites conhecidos - sobretudo quando falamos de sentimentos ou emoções ou atitudes. Não somos frutos que se possam cortar ao meio separando as partes, classificando-as depois, aplicando os critérios que escolhemos por razões que mais se aproximam daquilo que supomos ser a nossa cara. Não podemos excluir, desprezando ou subestimando, tratando como inútil ou não-emoção ou não-vida ou não-sentimento a parte, o gomo, que não se adequa aquilo que nós consideramos digno de ser lido ou olhado ou sentido como sério ou real. A vida e as emoções e os sentimentos e as atitudes são mutáveis, renováveis, reinventáveis.

Na vida lá fora o comportamento é idêntico ao tido na vida cá dentro, apenas muitíssimo mais difícil de manter ou reproduzir.

Aquilo que essencialmente desejamos é a perfeição. Buscamos - muitas vezes de forma insana, tresloucada, perigosa e imbecil - essa espécie de quimera que só os deuses, porque estão longe de nós, dizem conhecer e possuir. Filtramos e somos filtrados. Aquilo que não nos agrada, tentamos abolir. Aquilo que nos dá prazer, tentamos conquistar. Só que é duro e difícil e muitas vezes impossível apagar das nossas vidas, e até dos nossos minutos lá fora, aquilo ou aqueles que odiamos ou, por uma razão qualquer, nos irritam ou enojam ou magoam. A mesma terrível dificuldade é encontrada no trabalho imenso que nos dá conservar no lá fora a admiração que os outros nos dedicam ou aquilo e aqueles que nós amamos e que correspondem a esse nosso sentimento.

Filtramos na vida lá fora o que desejamos que os outros saibam de nós. Somos filtrados pelos outros e os outros recebem de nós o mesmo tratamento. Não tenhamos ilusões. Há recantos da minha alma que nem os deuses se atrevem a espreitar. O nem às paredes confesso não é só bem chorado pela Amália. Todos nós sabemos entoar a melodia. Na vida lá fora somos um - só um? -  blogue, mas brutalmente mais difícil de manter e - maldição! - com menos filtros.
Na vida cá dentro, existe uma tecla maquiavelicamente fascinante: A tecla do Delete. Apagamos de forma imediata aquilo ou aquele que nos incomodam. Destruímos num segundo o que nos começa a aborrecer. Aniquilamos instantaneamente o que nos repugna e mantemos sempre envolto em glamour tudo o que nos dá prazer ou que nos acaricia o ego. Um Einstein caseiro e uma relatividade tão conveniente no espaço que vai do nosso cérebro ao teclado. O tempo da escrita é mais longo do que o tempo da oralidade mesmo que os dois estejam sob o domínio do mesmo espaço temporal.

Filtramos o que queremos ver, ouvir, ler e sentir e somos da mesma forma filtrados e mesmo ao filtro que usamos acaba por ser acrescentado um novo, aquele que é usado pelo Outro que selecciona inconscientemente o que de nos quer ver, conhecer, sentir, ouvir.

Exactamente como o que se passa no lá fora, mas com maior intensidade e um desmesuradamente menor grau de dificuldade, filtramos e somos filtrados sem cessar. Só que aqui tudo está ao alcance de um click. A perfeição, a que acreditamos ser a nossa - haverá outra? -, à nossa frente, ao nosso alcance. Daí a popularidade do cá dentro.

Creio que reconhecemos que não existe uma vida lá fora e uma vida cá dentro. Existem apenas estados de alma que explodem ou se apagam sob um incontável número de velhas e novíssimas formas, mas que todas são expelidas ou soterradas pela alma única de cada um de nós, usando os filtros que escolhemos a cada minuto que passa ou em cada tecla que tocamos.

Penso ser, no mínimo, leviano classificar como fugaz, fútil, inútil, desprezível, vazio e descartável as emoções que são geradas ou deletadas onde quer que seja e por quem quer que seja. Acredito também que os que tendem a validar, julgar ou inutilizar emoções, atitudes, sentimentos, sejam eles quais forem e apareçam onde quer que seja, classificando o que é digno de registo, de desprezo, atenção ou esquecimento - mas cuja vida lá fora depende muito substancialmente do que se passa cá dentro -, correm o sério risco de mais tarde ou mais cedo começar a murmurar que o homem não pousou na lua e que é tudo fita e de não perceber que a vida entra por todo o lado e que as emoções e sentimentos que dela fazem parte sofrem mutações e a cada momento se reinventam. São como os vírus.

Depois existe aqui, também como lá fora, a multiplicação, a dispersão fascinante e quase perigosa de estados de alma. Mas estou convencida que isso é uma outra questão e que Freud se iria divertir muito, também cá dentro.