A gata gorda e parda, almofadada e velha, cruzou a pedra da lareira da cozinha, saltou para a cornija e recolhendo a cauda farfalhuda, sentou-se, desvenerando o calor que a lambia, semicerrou os olhos a olhar para mim e permitiu que a dona lhe sorrisse e acomodasse uma carícia na seda da manhosice do corpo.
Veio com a senhora recente nestas lides, as duas poderosas, gordas, pardas e almofadadas, e depressa dominou os espaços quentes das pedras e soalhos aquecidos pelas brasas das lareiras ou do sol. Adormece longamente, alongada de tédio.
É quase terna. Como se a mansidão atapetasse os corredores do tempo e a brandura com que ondula se tornasse corpo decifrável. As manhãs em que ela trepa ao cume do calor, tornam-se palpáveis. Como se o silêncio das garras fosse mais pesado, ou como se o som da minha vida estendesse mantas de veludo nas suas patas.
Tem fama de ladra. Consta que renitente. Pendura-se no atarefamento da cozinha e desvia os fundos do jantar.
Aqui, abandonou o crime, converteu-se. Já não rapina, redimiu-se a ré. Descansa em paz segura o peixe do jantar e desassossegasse a dona com a redenção.
- Estará doente, a pobre?
Mas não está. Lambuza-se com a dormência do sossego e com a desapoquentação da santidade.
Ninguém entende, a não ser eu que resto.
A minha Casa, desde os confins do tempo, vai gerando por instinto bruto ou urdidura de almas, as mais ilegíveis conivências, os mais impenetráveis vínculos entre os seres. Tornamo-nos as pedras que a ergueram. Maiores, melhores
Entranha-se lealdade, uma inabalável fidelidade em nós, que torna inútil a consciência da pertença, pois que somos simbióticos, planos no olhar que vê o mundo e que difere do olhar do estranho que é reconhecido como dispensável, tido quase como ataque à cidadela em que por instinto nos vamos tornando.
Esta singularidade mantém os esteios do passado. Segura a Casa que se vai tornando um corpo, acto comum que só se entende a si, mas que se ergue em luminosa certeza da sua permanência no futuro.
A gata gorda e parda que pertence à mulher almofada percebeu antes da dona que é agora pertença destes muros. Não rouba, já que tudo é ela.
As gatas, só as gatas e as ruivas, sabem disto. O resto é o piar do mulherio e o respigar dos ratos.